Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O mergulho profundo de um ator em 'Albatroz'

Em 'Albatroz', o belga Jérémie Renier é Laurent, um policial às voltas com o remorso | Foto: Divulgação

 

Inédito há três anos em nossas telas, "Albatroz" surge disponível para compra digital no Mercado Livre. É uma joia do cinema francês. Passou-se um bocado desde a Berlinale 2021, mas a capital alemã não se recupera desse título que ainda reverbera por suas esquinas. Ninguém entendeu como o júri deixou sair sem láureas um filme tão possante, que nos devasta por sua discussão sobre o peso da culpa e importância da catarse como expiação do remorso. Um filme que vendeu 90 mil ingressos em um mês em uma friíssima temporada de vacas magras para o cinema francês, dirigido e escrito por Xavier Beauvois, mesmo cineasta que há 12 anos deslumbrou o mundo com "Deuses e Homens". Seu chamariz é a potência de um ator em estado de graça: Jérémie Renier.

À época em que Beauvois exibiu o longa na disputa pelo Urso dourado, em março passado, a revista portuguesa C7nema escreveu assim: "Existem atores que nos ganham pelo carisma (Gérard Philipe, David Niven, Bill Murray), atores que nos seduzem pelo ativismo político (Yves Montand, Danny Glover) e existem aqueles que nos imantam pelo puro talento (Daniel Day-Lewis, Tony Leung, Denzel Washington, Milton Gonçalves). Mas há uma quarta categoria: a dos atores essenciais. Profissionais que misturando carisma, talento e um certo grau de mobilização política tornam-se símbolos de seu tempo, metonímias vivas do modo como vivemos um certo período da História. Jérémie é um deles".

Aos 43 anos, Renier passou pelo Brasil em 2018 para lançar os filmes "O Amante Duplo" (do mesmo François Ozon) e "Carnívoras" (que dirigiu com seu irmão, Yannick). Em "Albatroz", ele vive Laurent, um policial acostumado à rotina tranquila da Normandia, numa zona portuária. É de secar a garganta a maneira como a câmera de Beauvois, modulada pela fotografia de Julien Hirsch, flana pela região e consegue deixar uma sensação de aspereza mesmo nos ambientes mais úmidos, de águas onipresentes.

Durão e eficaz em seu ofício, Laurent mantém uma doce relação com a namorada, Marie (Marie-Julie Maille, em impecável em sua atuação). Eles têm uma filha, mas nunca se casaram. Ele, contudo, sonha com uma festa de casamento, e ela, não, quase numa inversão das representações arquetípicas de gênero. Ele sonha ainda em ganhar o mundo num barco. Mas depois que um incidente em seu trabalho, na tentativa de conter um homem descontrolado, o oceano de prosperidade desse doce personagem vira uma torrente de pesadelo e só lhe restam as marés.

Até a tormenta bater, Beauvois é plácio. Ele não se apressa a entrar em pontos de virada ao lidar com o roteiro de Frédérique Moreau e a da própria Marie-Julie. Não é um filme SOBRE um incidente, mas COM um incidente, onde o mais importante é saber quem Laurent era e o que ele vai se tornar. Tudo isso apoiado no amplo ferramental de um bom ator.