Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Nos rastros doEsquadrão da Morte

Marco do cinema nacional, "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" volta a arregimentar plateias, desta vez no streaming. O longa com Reginaldo Farias agora é sucesso da Netflix | Foto: Divulgação

Marco brasileiro de bilheteria, "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" (1977) chegou à Netflix. Inspirado no romance-reportagem homônimo de José Louzeiro (1932-2017), que completa 50 anos de sua chegada às livrarias em 1975, o longa-metragem de Hector Babenco (1946-2016) foi um dos maiores sucessos comerciais do audiovisual no país de todos os tempos, com 5,4 milhões de ingressos vendidos.

Ano a ano, o Brasil arrisca injetar adrenalina em suas artérias entupidas de sociologia, como se viu no flerte entre o thriller e a denúncia expresso em "Tropa de Elite" I e II (2007-2010) e em "Cidade de Deus", que agora vira série, via O2. Existem experimentos recentes como "Amado" (2022), "A Divisão" (2019) e "Cano Serrado" (2018).

Mas a perfeição que Babenco alcançou em sua imersão nos feitos do assaltante Lúcio Flávio Vilar Lyrio (1944-1975). Trata-se de um dos mais precisos ensaios da representação cinematográfica da violência nacional, tanto a do crime organizado quanto a da corrupção policial. Aliás, o filme seguinte do cineasta, "Pixote - A Lei do Mais Fraco", foi ganhador do Leopardo de Prata de Locarno em 1981, também inspirado em Louzeiro.

Pontuado por um realismo seco, "Lúcio Flávio" garantiu a Reginaldo Faria o prêmio de Melhor Ator no Festival de Taormina, na Itália, e no Festival de Gramado. É importante que se ressalte a vigorosa atuação de Ana Maria Magalhães como Janice, a paixão de Lúcio. Já Paulo César Pereio rouba a cena como Moretti, tira de caráter duvidoso que acossa o personagem de Faria.

Fotografado por Lauro Escorel, o filme une espetáculo e reflexão em sua observação da realidade policial brasileira com uma destreza técnica inesperada para os padrões do cinema latino-americano de sua época. Raras vezes, até aquela data, uma troca de tiros foi retratada com tamanho rigor plástico de enquadramentos nas telas nacionais.

Em seus minutos iniciais, vemos o achaque dos policias Bechara (Ivan Cândido) e 132 (Milton Gonçalves, perfeito em cena) a Dondinho (Grande Otelo), amigo de Lúcio, que é tratado como escória, num reflexo dos ranços racistas do país. Essa sequência joga especiarias sociológicas neste cozido amargo, entrando em segregações e exclusões adentro, aprofundando a percepção dos desajustes sociais do país. É menos uma historinha de romantização da marginalidade e mais um ensaio sobre os saldos da ditadura, chocado no ninho da cobra. Babenco foi ameaçado, teve sua casa metralhada, mas nada disso lhe serviu de mordaça. O filme entrou em circuito com o referendo de melhor filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo". A tensa montagem é de Silvio Renoldi. A trilha sonora é de John Neschling.

Coroado com o lucro comercial, o longa de Babenco deu frutos. Dele saíram (o seminal) "República dos Assassinos" (1979), de Miguel Faria Jr. - inspirado em Aguinaldo Silva - e "Eu Matei Lúcio Flávio" (também de 1979), de Antônio Calmon. Mais do que gerar rebentos, "Lúcio Flávio" gerou História: a partir dele, a memória do banditismo social brasileiro não se limitou aos cangaceiros do nordestern, ganhando a selva urbana.

Há 21 anos, Babenco lançou "Carandiru", que vendeu 4,7 milhões de ingressos, seguindo por essa mesma toada. Esse olhar sobre a Casa de Detenção São Paulo também está na Netflix.