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Uma arte em extinção?

O uso da IA ameaça o trabalho de centenas de dubladores no Brasil | Foto: Reprodução Shutterstock

A Globoplay dublou sua série documental "Rio-Paris: A Tragédia do Voo 447" usando inteligência artificial, o que fez o Sated-RJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro) emitir nota de repúdio.

"Isso representa um desrespeito inaceitável aos profissionais de dublagem, que se dedicam a essa arte com talento e sensibilidade. Ao optar por uma solução tecnológica em detrimento dos dubladores, a Globoplay não apenas prejudica esses trabalhadores, retirando-lhes oportunidades de emprego, mas também compromete a qualidade do produto final oferecido ao público", denuncia o documento da entidade.

A dublagem brasileira é uma forma de arte que vai além da simples tradução de diálogos. Trata-se de uma arte capaz de adicionar novas camadas de humor, emoção e identidade cultural às produções de outros países, promovendo identificação e empatia de nosso público com obras estrangeiras. A escolha da plataforma de streaming da Globo reacendeu o debate: qual o futuro dos dubladores?

O ator dublador Christiano Torreão assistiu a série documental esclarece que as ferramentas de inteligência artificial foram usadas na técnica do voice over. "Essa produção utilizou a inteligência artificial para produzir um voice over, que é uma voz em cima de uma voz original que está por baixo num volume menor. E aquela voz que está por cima funciona como uma tradução simultânea. E na realidade a demanda do trabalho de dubladores em voice over é historicamente maior do que na dublagem lip sync, aquela sincronizada que costumamos ver nos filmes. O que se recomenda aos atores que fazem voice over é a utilização da voz mais branda possível, sem interpretações, e que comece depois da fala original e termine um pouco antes, para efeito de diferenciação em relação a uma dublagem, que exige um lip sync", esclarece.

"Estamos diante de algo muito grave e é importante que se haja uma regulação imediata desse mercado porque esse tipo de trabalho, o voice over, corresponde a 65% do trabalho da dublagem brasileira. Nós atores de de dublagem realizamos esse trabalho até hoje e embora o resultado do que vemos nesta produção do Globoplay possa parecer aceitável para a população, nós estamos diante da possibilidade de acabar com centenas de empregos. Se 65% dos trabalhos de dublagem feita por profissionais desaparecer, imagine o estrago", reforça Torreão, dublador oficial de Leonardo Di Caprio no Brasil e com 31 anos de experiência.

Para o especialista Thoran Rodrigues, o fim de algumas profissões, como a dos dubladores, é inevitável. CEO da BigDataCorp, Rodrigues lembra que outras profissões foram extintas no passado com o avanço da tecnologia, como a dos telefonistas. "A gente tem dois desafios. O primeiro é aprender a usar esse ferramental para fazer o seu trabalho de forma mais eficiente, e o segundo é mais da sociedade, de dar o apoio às pessoas que estão tendo seus trabalhos automatizados, para que elas possam adquirir o conhecimento, habilidades, para conseguir novos empregos dado essa nova realidade tecnológica", disse em entrevista ao portal Splash.


 

Uso da IA em produções no audiovisual ainda não está regulamentado no país

Cena do documentário 'Rio-Paris: Voo 447', produção Globoplay que vem causando polêmica pelo uso de ferramentas de inteligência artificial na dublagem de alguns depoimentos | Foto: Reprodução

O uso de inteligência artificial na dublagem ainda não é regulamentado no Brasil. O movimento "Dublagem Viva", que reúne profissionais do setor, luta pela criação de regras no uso da tecnologia.

A opção de trocar dubladores profissionais pela tecnologia teve uma repercussão negativa nas redes sociais, em que muitos espectadores questionaram a depreciação da classe profissional e a qualidade ruim da dublagem artificial.

"Tragédia do voo 447" foi lançada na Globoplay no fim de maio e retrata o acidente com o voo da Air France. O documentário foi lançado exatamente 15 anos depois da tragédia, que deixou 228 mortos. O documentário tem quatro episódios e está disponível na Globoplay.

A produção foi gravada na França, Estados Unidos e Brasil por três meses. No início dos episódios, é exibido o aviso de que entrevistas concedidas em outras línguas foram dubladas com Inteligência Artificial.

A versão em português das entrevistas concedidas em língua estrangeira para este documentário foi feita a partir da voz dos próprios entrevistados, com o uso de inteligência artificial, respeitando-se todos os direitos e leis aplicáveis. O conteúdo das dublagens é fiel às entrevistas originais. Os entrevistados que não aceitaram a dublagem foram legendados.

Nas redes sociais, espectadores questionaram a ausência da chamada "dublagem viva", ou seja, feita por atores dubladores profissionais e também questionaram a qualidade das vozes feitas por IA.

A série entrevistou técnicos que participaram das investigações, especialistas em aviação, jornalistas que cobriram o caso e parentes das vítimas. Ela traz a investigação da queda do avião, o drama das famílias destroçadas pela tragédia e o que mudou na história da aviação após o desastre.

Na ocasião do lancçamento da série documental, Globo informou que "realizou testes e desenvolveu soluções internas que estão em experimentação e uso" antes de dublar produções com o uso de inteligência artificial, afirmando que esse processo acontece "sempre de forma ética, com transparência, buscando a qualidade e respeitando a questão dos direitos."

"Foi o que aconteceu, por exemplo, em Rio-Paris: cumprimos o compromisso assumido com algumas empresas de dublagem de não utilizar as vozes de seus dubladores através de processos de IA ou para o treinamento de IA", completa o comunicado divulgado pela emissora.