Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Na trilha de um cult nacional

O tom de clássicos do noir norteia a narrativa de 'Terra Estrangeira', lançado há quase três décadas | Foto: Divulgação

Um dos pilares da Retomada - período de 1995 a 2010 em que o cinema nacional reiniciou sua produção, abrindo novas frentes estéticas, após o sucateamento da Embrafilme -, "Terra Estrangeira", cult das narrativas policiais (e sociais), entra na grade da Netflix nesta quarta-feira, às vésperas de completar 30 anos.

Dirigido por Daniela Thomas e Walter Salles, o thriller de 1995 narra a viagem que leva Paco (Fernando Alves Pinto) para além dos limites de sua própria insatisfação com seu país de origem, aos braços de Alex (Fernanda Torres).

Calcados quase que permanentemente no binômio "desterro/reencontro", os filmes que tornaram Salles um dos mais influentes nomes do cinema latino-americano da atualidade encontraram seu combustível de arranque no périplo ibérico de um jovem que traduzia as angústias de toda uma geração.

No caso, ele fala da geração que foi atropelada pelo turbilhão collorido, ou seja, o confisco da poupança pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992). Confisco esse que reduziu a pó o sonho democrático dos mesmos brasileiros que ajudaram eleger o Caçador de Marajá alagoano ao Palácio do Planalto.

Há todo um cabedal político servindo de óleo diesel ao tanque de "Terra estrangeira", mantendo o filme vivo, desde sua trajetória inicial pelas salas de exibição, entre 1995 e 1996. Uma redonda reflexão sobre o sentimento de desilusão para com o Brasil garantiu a essa produção uma eternidade para além de sua requintada experimentação narrativa, marcada por um diálogo com o thriller noir americano dos anos 1940 e 50.

 

Entendimento de uma agonia existencial

Daniela Thomas (de óculos) e Walter Salles (na câmera) nas filmagens durante as filmagens de 'Terra Estrangeira' | Foto: Divulgação

Pelo menos na filmografia da Retomada, só um outro longa teve tanta potencialidade ao tirar um raio x da desesperança geracional: o doloroso "O Príncipe" (2002), de Ugo Giorgetti. Percebe-se como os filmes marcantes do período custaram a criar escola, a mobilizar esforços na mesma rota.

"Terra estrangeira" não ficou totalmente sozinho, em parte pelo fato de Walter, que o realizou a quatro mãos com Daniela Thomas, estar afinando a ontologia do êxodo a cada novo trabalho.

O atual é uma adaptação do romance "Ainda Estou Aqui", de Marcelo Rubens Paiva, também com Fernanda Torres e com Selton Mello, além da participação de Fernanda Montenegro.

"Central do Brasil" (de 1998, que também estreia na Netflix nesta quarta), "Abril Despedaçado" (de 2002) e "Diários de Motocicleta" (de 2004) são projetos hermanos na estrada da arte que, sob tintas beatniks, aos moldes do "On the Road" literário de Jack Kerouac, tenta entender a agonia existencial que impulsiona os homens a imitarem Ulisses numa odisséia pessoal em busca de sentido.

Em todos eles, Salles volta suas lentes para pessoas que, como Paco, parecem perdidas nos limites econômicos, éticos e até familiares de sua região de origem. Na distância está a liberdade. Onde há a liberdade, deve haver a esperança. Algo que em "casa" - sobretudo se essa casa for o Brasil de Collor - acabou. Surpreendente por seu ritmo frenético, que parece decalcado de "A Morte num Beijo", de Robert Aldrich, pela fotografia em preto e branco de Walter Carvalho, "Terra Estrageira" está se fortalecendo com o passar dos anos, compartilhando com a plateia um catálogo de referências cinematográficas. Referências que vão da mais rígida gramática policial, na linha dos polars de Jean-Pierre Melville (tipo "Técnica de um Delator"), às divagações sobre incomunicabilidade e busca da identidade de Michelangelo Antonioni. A construção das sequências de fuga do casal e as intromissões violentas dos gângsters que aliciam Paco e eliminam Miguel (Alexandre Borges), o namorado de Alex, fogem de qualquer lugar-comum das histórias calcadas em tensão.

O suspense mantido na direção de Salles e Daniela Thomas consegue eletrizar o olhar sem obstruir a razão, que associa a luta de Paco e Alex para sobreviver à realidade dos brasileiros que enfrentaram o inferno solitário do exílio, em busca de uma vida melhor.

Há uma poesia por traz das tomadas calcadas por Walter Carvalho, produzindo linguagem ao domar os fantasmas de influências que poderiam pasteurizar os planos e lhe esvaziar o estilo. Todo o investimento em ensaios de base teatral ajudou a integrar as questões pessoais de Alves Pinto ao olhar poético de Paco, que vislumbra o horizonte luso com as pálpebras românticas dos sonhadores. Numa azeitada interação de atores, Salles e Daniela aportaram numa confluência de culturas: brasileira, angolana, portuguesa, espanhola. Há muitos sotaques, mas todos estão conjugando o mesmo verbo: resistir.