Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Uma nova possibilidade para 'Missão Impossível'

Tom Cruise luta com Esai Morales numa das sequências de maior risco de 'Missão Impossível: Acerto de Contas', que teve bilheteria fraca nos cinemas mas chega com força à grade da Netflix | Foto: Divulgação

Estrear na Netflix deu outro ânimo a "Missão: Impossível - Acerto de Contas - Parte 1" ("Mission: Impossible - Dead Reckoning Part One"), que ganhou uma sobrevida ao ser indicado a dois Oscars (Melhor Som e Melhores Efeitos Visuais), em janeiro, elevando o cacife de um filme que impressionou a crítica, mas faturou menos do que o esperado.

Sua presença no mais popular dos streamings hoje amplia sua audiência e exponencia sua fama. Coração da franquia, Tom Cruise, seu protagonista e produtor, chegou a adiar a parte dois, hoje esperada para 2025, alegando que contratempos inerentes às graves dos sindicatos de atrizes/atores e de roteiristas prejudicou o cronograma.

O fato é que os US$ 567 milhões arrecadados pela parte sete de uma saga iniciada em 1996 ficaram aquém do esperado pelos exibidores. A colisão com "Barbenheimer" - o lançamento casado de "Barbie" e de "Oppenheimer" - esvaziou as salas onde Cruise esperava reinar soberano. Mas, o prestígio que ele alcançou com o regresso do agente Ethan Hunt é inexorável, e, com a chegada ao streaming, o longa vê seu cacife subir.

É uma brilhante revisão dos códigos das narrativas de espiões. Foi a Guerra Fria, entre os anos de 1950 e 1980, que transformou o ofício por vezes "oficioso" da espionagem em um gênero cinematográfico de viés pop, seja por trilhas de tons super-heroicos (caso de "007") ou por caminhos existencialistas (o oscarizado "A Vida dos Outros" ou o ganhador da Palma de Ouro de 1974, "A Conversação"). Esse veio sempre explorou bem os feitos de pessoas invisíveis infiltradas em espaços onde chegam como parasitas.

O parasitismo é uma sensação já há muito superada por Ethan Hunt, um mestre em disfarces encarnado por Tom Cruise há 28 anos. Ele só não supera o fato de não conseguir proteger as pessoas à sua volta como deveria e gostaria, no empenho de dar ao mundo a segurança adequada.

Desde 2006, quando J.J. Abrams dirigiu o terceiro capítulo da franquia "Missão: Impossível" - título usado para designar a agência secretíssima da qual o personagem é o principal operativo -, Ethan sente o peso desse fardo, incapaz de sublimar a arte da perda.

A beleza de "Acerto de Contas - Parte 1", além de todo o arrojo técnico de sua narrativa, é saber explorar as camadas mais íntimas de um homem que salvou o mundo muitas vezes, sacrificando muito de si para isso. De toda a cinessérie, este sétimo episódio, filmado em meio à pandemia, ao custo de US$ 290 milhões, é o que mais se aproxima da exuberância (e do humanismo) do primeiro filme, que teve um diretor autoralíssimo, Brian De Palma, como condutor.

Quem conduz as peripécias de Cruise (em impecável atuação, bem dublada aqui por Philippe Maia) é Christopher McQuarrie, um cineasta em formação, que, ao contrário do magistral De Palma, vem da palavra, da força da escrita, tendo conquistado o Oscar de Melhor Roteiro por "Os Suspeitos", há três décadas. Ele e o astro trabalham juntos desde o subestimado "Operação Valquíria" (2008) e estiveram juntos no fenômeno popular "Top Gun: Maverick", em 2022.

Filme a filme os dois travam uma parceria que, na telona, expressa-se a partir de uma investigação do mito do herói, pautada por uma expedição existencial ao que o arquétipo do "vigilante" ou do "guardião" tem de mais doído - e de mais particular -, em meio à força que os impele.

No roteiro de "Missão" nº 7, há um resquício vivo (e perigoso) do passado de Ethan, o terrorista Gabriel (vivido pelo nova-iorquino de origem porto-riquenha Esai Morales), tentando domesticar uma forma de IA (inteligência artificial) capaz de influir nos sistemas de defesa do mundo. Gabriel parece se encaixar no pior tipo de braço armado do terror que há: aquele que não faz exigências. Isso, aparentemente.

Conhecido por Hollywood desde "La Bamba" (1987), Morales consegue um holofote dos mais luminosos para desfilar uma vilania que nos assusta, mas traz consigo um grau de humanismo difícil de ser rotulado. Aliás, rótulos dos mais diversos são desfolhados e descartados no trabalho de McQuarrie para colocar em pauta os riscos inerentes à autonomia intelectuais dos sistemas operacionais e para abrir um debate sobre quais são as "agências" reguladores do Mal que agem nas sombras da vida, no jogo da morte. Jogo no qual Ethan - aqui no apogeu de sua evolução dramatúrgica - é um craque.

Formalmente, numa edição que se dilata ao longo de duas horas e 43 minutos, o realizador não deixa que nenhum minuto pareça desperdiçado (nem gorduroso), oferecendo ao público combates trincados de adrenalina, desafios às leis da aerodinâmica e uma sequência num trem para ficar para a posteridade.

Em tempos pós "John Wick", quando a saga estrelada por Keanu Reeves devolveu ao audiovisual o sabor da cinemática (o movimento puro), Cruise se adapta como ninguém às demandas das novas gerações. Com o carisma a mil, Morales faz de Gabriel um vilão antológico.