Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Estação Netflix

A Dama do Lotação | Foto: Divulgação

Não é que "A Dama do Lotação" foi parar na Netflix? O maior popular dos streamings ampliou seu cardápio com uma safra invejável de clássicos e cults nacionais e incluiu o marco de Neville D'Almeida em sua grade. Trata-se do longa-metragem que confirmou a habilidade de Sonia em arrebatar multidões, quase um ano após "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976).

Egresso de narrativas experimentais patrulhadas pela Censura, como "Jardim de Guerra" (1969), Neville negociou com Nelson Rodrigues (1912-1980) a possibilidade de filmar o conto "A Dama do Lotação", a fim de fazer dele um tratado libertário sobre o empoderamento de uma mulher oprimida em seus desejos. Solange é desenhada na tela por Sonia como signo de gestos aparentemente simples, que se agigantam poeticamente em sua forma de se impor pelo exercício do prazer.

Muitos dos hábitos e práticas que o filme retrata foram esmagados sob o peso da História e, nos novos tempos, soam ásperos na tela. Mas a fúria com que Neville se impõe contra o moralismo e o afogamento da sublimam imagens que nos sufocam, sob a direção de fotografia dionísaca e cálida de Edson Santos.

Em sua trama, uma violência conjugal é o "Basta!" que deflagra uma revolução. Após ser abusada pelo marido na noite de núpcias, Solange passa a rejeitá-lo. A partir daí, faz de um ônibus seu Tinder mecânico particular, buscando encontros aleatórios. A canção de Caetano Veloso, "Pecado Original", tonifica o percurso da personagem ao dizer "Todo beijo, todo medo/ Todo corpo em movimento/ Está cheio de inferno e céu/ (...) Tempo da Serpente, nossa irmã/ Sonho de ter uma vida sã". Esses versos e demais estrofes de Caetano vão se repetir ao longo de 110 minutos, como uma ladainha de louvação à democracia afetiva.

À época de seu lançamento, "A Dama do Lotação" (1978) contabilizou 6.509.134 ingressos vendidos, isso só pelas estatísticas da Embrafilme, pois outras fontes falam em 7,5 milhões de pagantes. É um dos maiores recordes de arrecadação da História deste país nas telas. Confira a seguir o menu de Brasil que a Netflix preparou:

RIO 40 GRAUS (1955) e VIDAS SECAS (1963), de Nelson Pereira dos Santos: O painel de exclusões da vida carioca que serviu de gênese para o cinema moderno no país se junta à versão para as telas do romance homônimo de Graciliano Ramos (1892-1953) num retrato da fase de formação de um realizador seminal para a depuração da brasilidade em nossas telas. O primeiro foi alvo de uma censura e teve de brigar quase um ano para ser exibido, enfrentando um veto moralizante contra suas denúncias. O segundo explodiu na tela do Festival de Cannes criando polêmica por conta da sequência da morte da cadela Baleia.

SÃO PAULO, SOCIEDADE ANÔNIMA (1965), de Luís Sérgio Person: Estima-se que a direção de fotografia de Ricardo Aronovich civilizou a maneira como nosso cinema enquadrava a realidade. Um P&B requintado dá uma tonalidade apolínea à saga de Carlos (Walmor Chagas, em primorosa atuação), um jovem que será engolfado pela ambição no sistema maquínico de uma SP em imparável processo de industrialização.

LUCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA e PIXOTE (1981), de Hector Babenco: Dois olhares do realizador argentino naturalizado brasileiro sobre vidas periféricas, ambas mediadas pela prosa do jornalista e escritor José Louzeiro (1932-2017). O primeiro recria o embate de um dos mais famosos ladrões de bancos do país (vivido por um Reginaldo Faria em estado de graça) com o Esquadrão da Morte. O segundo, premiado no Festival de Locarno e indicado ao Globo de Ouro, mostra a sofrida realidade dos menores de rua do país.

TERRA ESTRANGEIRA (1995), de Daniela Thomas e Walter Salles: Um policial inspirado pelo sentimento de desterro que se abateu sobre os brasileiros com o confisco da caderneta de poupança em 1990, durante o governo Collor. Um aspirante a ator (Fernando Alves Pinto) vai para Portugal atrás de uma nova chance e se enfia numa intriga criminal ao se encantar pela jovem Alex (Fernanda Torres). A estonteante fotografia em P&B de Walter Carvalho encanta até hoje.

BICHO DE SETE CABEÇAS (2000), de Laís Bodanzky: Indicado ao Leopardo de Ouro de Locarno, esta adaptação de "O Canto dos Malditos", de Austregésilo Carrano (1957-2008), transformou Rodrigo Santoro num dos maiores astros do país, filtrando a pecha de galã que a televisão deu a ele, abrindo-lhe novas oportunidades de trabalho. Ganhou sete troféus Candango no Festival de Brasília abrindo um debate sobre a violência do sistema manicomial no país a partir do drama de um rapaz que é internado pelo pai por fumar maconha.

CIDADE BAIXA (2005), de Sergio Machado: Alice Braga ganhou o troféu Redentor de Melhor Atriz, no Festival do Rio, neste triângulo amoroso no submundo da Bahia, onde ela vive uma garota de programa disputada por dois amigos fidelíssimos: um boxeador, Deco (Lázaro Ramos); e o assaltante Naldinho (Wagner Moura pré Capitão Nascimento). Melhor Filme na Première Brasil 2005, o longa ganhou o Prêmio da Juventude em Cannes.