Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Abel Ferrara nas garras de Caim

Ethan Hawke se divide em dois papéis em 'Zeros e Uns', sob a direção de Abel Ferrara | Foto: Divulgação

 

Devotado neste momento à realização do filme de gângster "American Nails", com seu habitual parceiro Willem Dafoe e Asia Argento, Abel Ferrara vem ocupando cada vez mais espaço nas plataformas de streaming. Um de seus filmes recentes de maior destaque, "Zeros e Uns" ("Zeros and Ones"), inédito no Brasil desde 2021, enfim ganha espaço no país via Amazon Prime. Há três anos, o longa-metragem rendeu ao cultuado realizador ítalo-americano o prêmio de Melhor Direção no Festival de Locarno, na Suíça. Ethan Hawke, seu protagonista, está em estado de graça em cena.

Em 2022, Cannes também cobrou holofotes para "Zeros e Uns" ao convocar Hawke para lançar lá seu .doc sobre astros e estrelas, a partir da relação entre Joanne Woodward e Paul Newman. "Eu estou nesse negócio de cinema desde quando ainda era uma criança e aprendi os percalços pelos quais os cineastas passam. É só lembrar quando saiu 'Sociedade dos Poetas Mortos'. Eu era moleque, sem experiência alguma, e tinha que ir pra festivais mundo afora representar o Peter Weir, mesmo sem ter nada a dizer, pela falta de maturidade, quando as pessoas estavam à espera de Robin Williams", disse Hawke ao Correio da Manhã em uma homenagem recebida no Festival de San Sebastián.

Lançado nos EUA em novembro de 2021, meio na surdina, sem fazer alarde, "Zeros e Uns" tem alcançado os olhares (e o aplauso) da crítica internacional devagarzinho, mesmo espaço em tela à altura de sua potência. Ao cruzar experiências de textura de vídeo com a linguagem do Zoom e com a cartilha dos filmes de espionagem, o diretor de "Vício Frenético" (1992), cria um mosaico plástico que renova, formalmente, o filão. Só "Guerra Sem Cortes" ("Redacted"), que deu a Brian De Palma o prêmio de melhor direção em Veneza, em 2007, atingiu algo tão possante na decantação da linguagem cinemática a partir de um diálogo com os códigos do YouTube. Na dramaturgia, Ferrara inflama (e joga sal sobre) as velhas feridas abertas na geopolítica internacional pelas práticas intervencionistas dos EUA. Os diálogos, ferocíssimos, abrem-se a pérolas como "Jesus foi apenas mais um soldado, uma casualidade de guerra". Esse desenho narrativo híbrido de videoarte, artes plásticas, colagem de pinturas e suspense ganha um colorido a mais do carisma de Hawke, dividido em dois papéis.

"Sempre acreditei que meu trabalho começa nas minhas escolhas. E sempre quis trabalhar com Ferrara, sobretudo depois de ver o que ele vem fazendo com Willem Dafoe ao longo dos anos", disse Hawke num vídeo enviado a Locarno.

Em "cartaz" nas livrarias com o romance "Código de um Cavaleiro", lançado aqui pela Harper Collins, Hawke encontrou em Ferrara um parceiro valioso, em meio a uma carreira pontuada por trocas com mestres como Hirokazu Koreeda, Peter Weir, Rebecca Miller, Antoine Fuqua, Andrew Niccol e Richard Linklater (de quem também é parceiro de escrita). Sob a orientação de Abel, ele interpreta um militar americano, conhecido como J.J. O tal soldado vai até Roma (onde Abel mora) para uma missão antiterrorista. É o que parece, pelo menos, até sabermos que ele tem um irmão gêmeo, que corre perigo em meio a uma célula de terror que parece jihadista ao expor questões religiosas. Tais questões só reforçam o traço autoral de Ferrara.

"Estamos carentes de autoentendimento no mundo e não é apenas pela pndemia. Falta um espaço para as pessoas se olharem nestes dias em que tudo é conectado e onde se rumina pouco as narrativas que a gente consome, Carecemos de gentileza para com as pequenas coisas que nos cercam", disse Ferrara ao Correio da Manhã em Berlim, em 2020, quando lançou "Sibéria", um drama existencialista classificado como obra-prima, e exibido na Mostra de São Paulo.

Mas em "Zeros e Uns ", o diretor de "Rei de Nova York" (1990) e "Maria" (Grande Prêmio do Júri em Veneza, em 2005), se supera, unindo o melhor dos dois mundos de sua obra. Temos, de um lado, a experimentação (quase no plano da textura) e, do outro, a habilidade de investigar a brutalidade como um cronista do desassossego alimentado pela contravenção. Este ano, na Berlinale, Ferrara exibiu uma experiência documental inédita: "Turn In The Wound", com a cantora Patti Smith.