Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Nas asas de Alejandro Iñárritu

Michael Keaton em 'Birdman' | Foto: Divulgação

Em destaque na Netflix com "Bardo" (2022), com Daniel Giménez Cacho, Alejandro González Iñárritu está se espalhando pela streaminguesfera com seus maiores sucessos. Seu aclamado "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2014) - laureado com quatro Oscars, entre eles a estatueta de melhor direção - arrumou um espaço nobre na grade da Disney , neste momento em que celebra dez anos de sucesso.

Filmes que conseguem reinventar (ou reciclar) a carreira de atores outrora famosos, mas chapados em rótulos, costumam se candidatar, de cara, ao brilho eterno do amor cinéfilo por seu fator surpresa e por seu espírito redentor. Assim sendo, "Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)" (título original) teria seu quinhão de aplauso só por soltar o bicho que, há tempos, andava preso na alma de Michael Keaton, pelo menos desde "Jackie Brown", lá atrás, em 1998.

Porém, existe mais do que um ator em estado de graça na produção de US$ 18 milhões filmada por Iñárritu em Manhattan, NY, fingindo ser um plano-sequência de 119 minutos de dramédia moral. Em um gesto de descarrego das tragédias que fizeram sua fama de "Amores Brutos" (2000) ao belo "Biutiful" (2010), o cineasta cria uma aeróbica de planos sem corte, alinhados por uma batida de pratos de bateria, numa maratona sinestésica, a fim de expressar a ressaca na qual a indústria audiovisual dos EUA se encontra.

Repetições de fórmula, confinamento de astros a personalidades icônicos, uma política de continuações e de remakes - tudo isso chocou o chicano que surfou na Nueva Onda latino-americana dos anos 2000, a mesma que revelou "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles; os argentinos "El Bonaerense - O Outro Lado da Lei" e "Nueve Reinas" e paulistíssimo "O Invasor", de Beto Brant.

Diante de uma Babel distinta da sua "Babel" (pelo qual ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes em 2006), o cineasta egresso da Cidade do México achou Hollywood uma festa estranha com gente esquisita. E desta impressão tirou o clima desta comédia sobre um ator que, no passado, fez fortuna e fama sob a fantasia do Homem-Pássaro, e, no presente, amarga a indiferença dos colegas.

Num empenho para reaver o respeito que perdeu (a começar pelo respeito consigo mesmo), Riggan Thomson (Keaton, numa atuação devastadora) tenta fazer uma peça na Broadway, tendo o quindim das artes cênicas (mas, ao mesmo tempo, garoto-enxaqueca dos palcos) como seu parceiro de ribalta: Mike (Edward Norton). Mas, com alma fraturada pela perda de prestígio e da autoconfiança, e com o bolso a vazar dólares por conta de uma montagem atribulada, Riggan vira uma espécie de Ubu Rei na patafísica que a Cultura das Celebridades se tornou: o darling de ontem é o looser de hoje.

Bastava uma sequência para que o longa - laureado com Oscars de melhor filme, direção, roteiro original e fotografia - durasse para sempre em nós: o trecho no qual Keaton desfila só de cuecas pela Broadway, remoendo a impotência de ser uma estrela em ocaso.

A fotografia de Emmanuel Lubezki enquadra a "Rua Larga" como uma Sodoma e Gomorra do entretenimento. Mas Iñarritu vai além e nos dá uma cena capaz de por abaixo a veleidade de uma das espécies mais ferozes da cadeia alimentar das artes: a crítica. O embate entre Riggan e a crítica de teatro nº 1 de Nova York (Lindsay Duncan) revela a hipocrisia de uma classe que, por vezes, dá sinais de miopia, opacizada pela catarata da onipotência. Viva México! Viva Keaton!

Na ponta do lápis, "Birdman", que começou sua carreira no Festival de Veneza, fez sucesso comercial, tendo faturado US$ 103 milhões nas bilheterias.

E tem mais Iñarritu no streaming: "21 Gramas" (2003), na Amazon Prime, com Sean Penn em uma dilacerante atuação como um matemático que teve o coração transplantado.