Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A marcha democrática de Mike Leigh

'Peterloo' revive a batalha homônima que sangrou a Inglaterra na primeira metade do século XIX no período que se seguiu às Guerras Napoleônicas | Foto: Divulgação

Enquanto seu novo filme, "Hard Truths", não abre sua carreira em circuito, buscando seu lugar na competição oficial do Festival de San Sebastián (20 a 28 de setembro), o diretor Mike Leigh, hoje com 81 anos, encontra um lugar nobre para si no streaming, com um filmaço que ficou inédito em circuito por aqui. Seu obrigatório "Peterloo", de 2108, está na Amazon Prime.

Sua narrativa com tons de épico histórico revisita uma mancha na História da Inglaterra com a ajuda do ganhador do Leão de Ouro com "Vera Drake", em 2004, e da Palma de Ouro, com "Segredos e mentiras", em 1996. Seu roteiro é dedicado a um sangrento episódio histórico que traz muita inquietação a seus conterrâneos. Chama-se de Massacre de Peterloo um combate que ocorreu em St. Peter's Field, Manchester, no noroeste da Inglaterra, em 16 de agosto de 1819.

Na ocasião, a cavalaria oficial do Reino marchou, armada, contra uma multidão de cerca de 70 mil pessoas, reunidas em uma manifestação pacífica para buscar a reforma da representação parlamentar. O protesto do povo era focado numa ressaca econômica referente ao fim das Guerras Napoleônicas: em 1815, o Reino Unido passou a sofrer com períodos de inflação e de desemprego crônico, exacerbados pela aprovação das chamadas Corn Laws (Leis dos Cereais), de imposto sobre a produção.

A pressão gerada pelas más condições econômicas ruins, associadas a supressões nos direitos eleitorais no Noroeste da Inglaterra, aumentou o apelo ao radicalismo politico. A população foi às ruas, mas foi silenciada a tiros. Essa é a história que Leigh revive. "Existe um lugar do silêncio que se confunde com o medo e, por isso, precisa ser combatido", disse Leigh a este repórter no Festival de Veneza, há seis anos.

É difícil explicar por que o júri veneziano de então, presidido pelo cineasta mexicano Guillermo Del Toro, esnobou este belíssimo libelo em prol da liberdade de expressão. Representante das narrativas clássicas do Reino Unido, este épico às avessas renova a estética palavrosa de seu realizador, um papa do naturalismo. No filme, ele recria - de modo cru, sem virtuosismos - um massacre organizado extraoficialmente pelo governo vigente para silenciar as lutas democráticas dos ingleses pobres. Em Veneza, havia espectador fechando os olhos diante da brutalidade da sequência do embate de tropas armadas contra 6 mil pessoas de baixa renda, onde cabos de fuzis chocavam-se contra crânios humanos.

"Eu não tento trazer respostas sobre esse massacre. Quis apenas emprestar carne e emoção aos relatos que foram compilados acerca da luta democrática que favoreceu, entre outras coisas, a criação de uma imprensa de oposição na cena monárquica do século XIX", disse Leigh ao Correio, no Lido. "Estamos vivendo dias de muita intolerância política no mundo. O direito à insatisfação não pode ser retirado das pessoas. E a batalha de Peterloo ilustra a vontade de resistência que moveu o povo da Inglaterra".

Conforme "Peterloo" forma novos fãs na Amazon, cresce a expectativa por "Verdades Difíceis", protagonizado por Mariane Jean-Baptiste. Ela vive Pansy, cuja vida financeira (e afetiva) é uma luta constante. Atingida por dores físicas e mentais, suas relações com o mundo são canalizadas pela raiva e pelo confronto: ela discute com a família, com o dentista, com o médico, com a moça do caixa do supermercado... Curtley, seu marido, não sabe como lidar com ela há muito tempo, enquanto Moses, seu filho, vive em seu próprio mundo, quase não diz uma palavra e passa os dias vagando sem rumo pelas ruas da cidade. Somente sua amorosa irmã Chantelle a compreende e é capaz de ajudá-la. O que Leigh promete nessa fábula ao avesso é um ensaio sobre o amor fraterno.