Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Selvageria com traços argentinos

A policial Eleandor (Shailene Woodley) cai nas graças do agente do FBI Lammark (Ben Mendelsohn) | Foto: Divulgação

Em meio à calorosa acolhida do Festival de Veneza a "El Jockey", de Luis Ortega, na disputa pelo Leão de Ouro de 2024, o cinema argentino começa a se espalhar pelas mais prestigiadas maratonas cinéfilas do mundo, como Toronto e San Sebastián, ao mesmo tempo em que seus maiores talentos mobilizam atenções no streaming. Seu maior astro, Ricardo Darín, hoje se prepara para tomar a Netflix de assalto com "El Eternauta", adaptação de uma HQ lendária. Noutra latitude, que já envolve o Brasil, o cineasta Damián Szifrón, celebrizado em esfera global com "Relatos Selvagens", há dez anos, hoje busca na streaminguesfera visibilidade para um filmaço que rodou em língua inglesa, mas teve pouca visibilidade nas telonas, em sua estreia: "Sede Assassina".

No exterior, o longa-metragem tem dois títulos, "To Catch A Killer" e "Misanthrope", e, atualmente, já é possível conferi-lo por aqui via Amazon Prime, onde pode ser comprado ou alugado. A plataforma assegura uma segunda chance ao filme, candidatando sua narrativa ao posto de cult.

Ter no currículo um longa-metragem que vendeu 3,8 milhões de ingressos em seu país natal (Argentina), disputou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e concorreu à Palma de Ouro, como se deu com "Relatos Selvagens", há uma década, transforma qualquer diretor em aposta certa para o cinemão americano. É o que se vê agora com Szifrón, que dedica sua agenda, neste momento, à feitura da minissérie "Actually Good: The Story Behind the Stranger". Aos 49 anos, ele assumiu o posto de jurado na competição oficial do Festival de Cannes, em 2023, num momento em que acompanhava a trajetória internacional de seu primeiro experimento comercial em língua inglesa e elenco hollywoodiano. "Sede Assassina", que já pode ser visto no www.primevideo.com, é estrelado pela americana Shailene Woodley (de "A Culpa É Das Estrelas") e pelo australiano Ben Mendelsohn (o general Orson Krennic de "Rogue One"). Trata-se de uma pequena, mas explosiva produção, em tons de thriller, numa mistura de "CSI" com Brian De Palma, rodado em Baltimore.

"É, em certa medida, um filme de monstro, mas numa monstruosidade como a gente via nos anos 1980 em 'Predador', em 'Aliens' e no primeiro 'O Exterminador do Futuro', ou seja, uma manifestação reptiliana do perigo por meio de criaturas com quem não se pode conversar, que não se manifestam de forma sensível. Quase num contraponto, temos heróis em derrocada, que renascem como fênix", diz Szifrón em entrevista via Zoom ao Correio da Manhã. "Se eu vou aos anos 1980 para especificar o inimigo, volto àquela década para explicar como eu me refiro aos heróis de Shailene e de Mendelsohn. Eu fui buscar referências em heróis cheios de fragilidade do cinema de ação feito em 1987 e 1988, como o Martin Riggs de Mel Gibson em 'Máquina Mortífera' e o John McClane de Bruce Willis em 'Duro de Matar. Mais do que deter um adversário, eles precisam enfrentar os obstáculos que carregam dentro de si pra vencer".

Há 20 anos, Szifrón mostrou a seus conterrâneos de América Latina que era bom de suspense com "El Fondo Del Mar", uma narrativa tensa sobre ciúme e obsessão. Dois anos depois, deu provas de que entendia tudo sobre o universo policial - e sobre os filmes que abordam a luta pela Lei - na comédia de ação "Tempo de Valentes", sempre ampliando a popularidade do cinema argentino. O fotógrafo Javier Julia, um dos mais disputados de seu país, vem sendo seu escudeiro fiel. Foi com o cineasta filmar "Sede Assassina" para mostrar aos americanos quanto talento existe no cinema hispânico.

"A gente se cerca de bons colaboradores e busca encontrar a temperatura e a pressão certas pra imagem, num filme que te convide à imersão", diz Szifrón.

Filmado em locações em Montreal, no Canadá, no início de 2021, em meio à pandemia, Sede Assassina" nos leva a uma investigação para deter um sniper (um atirador de elite de mira infalível) que espalha cadáveres pelas ruas de Baltimore sem razões aparentes. É num réveillon que os primeiros crimes dessa serial killer são registrados, com quase 30 mortos. O número assusta as autoridades e demanda a presença de um bamba do FBI, um dos diretores da instituição: o taciturno Lammark, vivido por Mendensohn. Ao chegar no local das mortes, ele descobre uma policial, Eleanor (papel de Shailene), que teve um corajoso desempenho no caso, tentando proteger potenciais alvos. O passado dela é conturbado, com direito a uma incursão pelas drogas. Mas existe uma precisão nela - e um certo descompasso com normas legais - que leva Lammark a apostar na jovem como a investigadora ideal para o caso. Só que os perigos só aumentam. O mistério, também.

"Busquei algo de poético nesse encontro entre eles pois são pessoas que se desviam da regra. Conforme vamos nos aproximando de cada um, procedimentos que desafiam os padrões vão se naturalizando diante de nós. Tudo isso acontece conforme uma amizade vai se formando", explica Szifrón, que estabelece uma inegável e autoral conexão entre este projeto de encomenda e "Relatos Selvagens" na maneira como ambos flagram o descontrole. "Eu fico feliz de ver que as pessoas tentem estabelecer conexões entre o meu trabalho atual e meus filmes argentinos, traçando uma genealogia afetiva".