Surpresa de Fincher

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Quebra-se o pau em rodinhas cinéfilas faz tempo acerca do potencial coeficiente artístico das adaptações de HQs para o cinema, transformadas no principal veio de sustentação da indústria audiovisual para tela grande desde a estreia de "Homem de Ferro" (2008), com Robert Downey Jr. Uns cospem pra cima, a rejeitar o valor de filmes como "Marvels", enquanto outros defendem as complexidades narrativas de longas como "Coringa", ganhador do Leão de Ouro de 2019. Martin Scorsese esgarçou esse conflito ao dar um peteleco na hegemonia das transposições de comics sobre o cinemão. Agravou-se a peleja quando a Warner Bros. optou por engavetar "Batgirl" sem dar bola para a expectativa de fãs da super-heroína. Uma dose extra de gasolina tem ampliado essa fogueira - de vaidades e de puro preconceito contra as artes gráficas - com a presença de "O Assassino" ("The Killer"), de David Fincher, na grade da Netflix. Foi o último longa a ser anexado a San Sebastián em 2023 e passou por lá com a pecha de "filme surpresa". Até hoje comenta-se a força de sua projeção em telas bascas, onde as BDs são objeto de adoração.

BD, ou Banda Desenhada, é o nome que se usa no Velho Mundo pra definir álbuns gráficos em quadrinhos, de luxo, em capa dura, que optam por narrativas de gênero (fantasia, sci-fi, faroeste) ou por aulas de História (cheias de poesia) mas trilham caminhos que fogem do maniqueísmo. Nos EUA, quem dá as cartas nesse mercado é a Marvel e a DC. Mas, na França, quem gira a roda são tramas adultas, calcadas em temas políticos, que dissecam mitos, biografam artistas e tornam a palavra "herói" algo elástico. É o caso do quadrinho adaptado por Fincher, realizador que tem "Se7en" (1995) como um dos marcos de seu currículo. A argamassa de seu novo longa é a BD "Le Tueur", uma série de tramas policiais quadrinizadas pela dupla Matz (roteiros) e Luc Jacamon (desenhos), que foi publicada em terras europeias pela editora Casterman, a partir de 1998, na coleção Ligne Rouge. Trata-se da saga de um matador cheio de tormentos, alienado da culpa a partir do senso de perfeccionismo radical que move seu gatilho. Michael Fassbender assume o papel e nos desbunda com seu esplendor ao escavar angústias nos personagens que encampa.

Indicado ao Leão de Ouro, "O Assassino" acompanha a luta do verdugo de aluguel encarnado por Fassbender a fim de sobreviver depois de um erro cometido numa execução. Amores dele (Sophie Charlotte encarna o mais relevante) correm perigo, enquanto ele tenta se resguardar de seus patrões. Cada gesto dele é embalado num oceano de palavras, pois embarcamos em seu drama pela dimensão da palavra. Dimensão à qual Fincher dá vertigem. (R.F.)