sèrie 'Os Quatro da Candelária' é um exercício de devolução da infância
Produção retrata crime que chocou o país a partir de sonhos das vítimas. Diretor Luís Lomenha afirma que foi mais fiel à ficção do que à realidade
Trinta e um anos, em 23 de julho de 1993, um grupo de cerca de 50 crianças e jovens dormia nas escadarias da Igreja da Candelária quando seus sonhos foram interrompidos por tiros. Para sempre, no caso de oito deles, de 11 a 19 anos, mortos naquela madrugada por policiais militares que abriram fogo e fugiram.
A chacina da Candelária chocou o país, mostrou a ação de grupos de extermínio e teve repercussão internacional. Revelou ainda uma fotografia da miséria brasileira (crianças dormindo nas ruas) e um filme da história do Brasil: eram quase todas pretas. Esse é o fio da meada que o cineasta Luís Lomenha puxou na minissérie "Os Quatro da Candelária".
Sem desviar das muitas brutalidades do caso, escolheu mergulhar no universo infantil de quatro integrantes do grupo. E, para jogar luz num cotidiano à margem e nos sonhos pueris de quem dormia na escadaria da igreja naquela noite, costura referências inusitadas para o tema, como Os Trapalhões, afrofuturismo, carnaval e o filme "A Fantástica Fábrica de Chocolates".
Antes de explorar uma mistura de gêneros em uma narrativa não linear, no entanto, o primeiro episódio lembra que "a cidade do Rio de Janeiro recebeu 3 milhões de africanos escravizados durante quatro séculos de colonização europeia", alguns dos quais ajudaram a erguer a Basílica Nossa Senhora da Candelária, a mesma onde esses seus descendentes foram assassinados em 1993.
Produzida pela Netflix, a minissérie foi baseada em relatos de sobreviventes da chacina às quais se misturaram histórias de vida do próprio Lomenha, criador e roteirista de "Os Quatro da Candelária", cuja direção assina junto com Márcia Faria.
"A gente quis ir para um caminho de entrar na imaginação daquelas crianças e jovens. Fiz horas de entrevistas com o Wagner [dos Santos, testemunha chave do crime que buscou refúgio na Suíça], com o Snoopy e a Érica [sobreviventes da chacina], que era a mais nova do grupo, e falamos do que aconteceu mas também de seus sonhos", explica Lomenha, que encontrou ali o material para criar sua fantasia. "A gente foi muito mais fiel à ficção do que à realidade."
Cada um dos quatro episódios da minissérie acompanha as 36 horas que antecederam os tiros da polícia na Candelária a partir de um dos quatro personagens principais da trama: Douglas, Sete, Jesus e Pipoca.
São crianças e jovens abandonados que buscavam os pais, ou filhos de pai e mãe assassinados, ou que foram para a rua para fugir de abusos dentro de casa. "Os personagens fazem coisas absurdas, como roubar bicheiro e fábrica de chocolate. Coisas do universo infantil de quem vivia naquela vulnerabilidade. A ideia é mostrar que eles eram crianças. Humanizar essas pessoas e devolver a infância para elas."
O elenco principal é formado por crianças e jovens não-atores que a produção buscou em todo canto e que surgem acompanhados por nomes como Antônio Pitanga, Péricles e Bruno Gagliasso, que vive um comerciante pai de família e amante de Sete, o mais velho do grupo da Candelária.
Lomenha, antes de ir para trás das câmeras, também foi um ator acidental no longa "Cidade de Deus". Estava na Fundição Progresso quando foi abordado e questionado se queria fazer parte de um filme. Disse que não era ator, e ouviu: "Não precisa ser ator, só precisa ser preto".
"Tomei um susto. Como assim? Aquilo naquela época era muito, muito raro", lembra ele. Ele saiu da experiência de ator por acaso para fundar o projeto Cinema Nosso, uma escola popular de audiovisual criada com os diretores Fernando Meirelles e Kátia Lund, e trabalhar com Walter Salles, diretor do filme que mais o marcou, "Central do Brasil".
Igualmente, Samuel Martins interpreta Douglas em "Os Quatro da Candelária" porque foi abordado na rua pelo ator Leandro Firmino, que faz o papel do pai postiço do garoto na minissérie. "Ele me ligou e disse que tinha acabado de encontrar um moleque em São Gonçalo tocando violino dentro do ônibus que dizia querer ser ator."
Martins, diz o diretor, se mostrou perfeito para o papel, numa empreitada que levou meses e que fez a produção se estender a dois anos por conta das restrições nas filmagens impostas a filmes com crianças no elenco. "A gente encontrou um grupo muito legal de meninos que vêm de um lugar de onde eu vim, só que no século 21, quando as coisas são mais fáceis, a mobilidade urbana é melhor e eles podem dizer que são negros e ter orgulho disso."