Maratona argentina de um filme só
Com quatro horas e meia de duração divididas em duas partes, 'Trenque Lauquen', badalado pela revista 'Cahiers du Cinéma', ganha lar na plataforma digital Max
Apesar de não ter entrado na primeira peneira para o Oscar de Melhor Filme Internacional com o badalado "Matem o Jóckey!" ("El Jockey"), de Luis Ortega, o cinema da Argentina fecha 2024 sob os holofotes do prestígio, depois da vitória de "Simón de la Montaña", de Federico Luis, na Semana da Crítica de Cannes, e do Urso de Ouro de Curta-metragem dado pela Berlinale a "Un Movimiento Extraño", de Francisco Lezama, hoje na MUBI.
Das luzes que iluminam a produção cinematográfica de nuestros hermanos, neste momento em que o governo do presidente Javier Milei põe em risco a indústria cultural deles, o mais contínuo (e o mais inusitado) facho é o que ronda "Trenque Lauquen", longa com 4h22 minutos de duração, dividido em duas partes (uma de 2h09 e outra de 2h13), dirigido pela cineasta Laura Citarella.
Em 2023, essa experiência narrativa áspera (e ousada) foi eleita O Filme do Ano na enquete da revista francesa "Cahiers du Cinéma", considerada a Bíblia da imagem em movimento. Sem espaço nas telas brasileiras, esse road movie requintado acabou por encontrar guarita na grade da plataforma digital Max.
Produzido pela El Pampero Cine, "Treque Lauquen" foi batizado em referência à província de economia agropecuária com cerca de 46 mil habitantes, que, segundo Google Maps e bússolas afins, fica situada a cinco horas e 30 minutos de carro de Buenos Aires, no sentido oeste. Proficiências não faltam ao longa, apesar de sua estrutura orçamentária mirrada para investir em marketing - compensada com soluções narrativas deslumbrantes. Lançada na mostra Orizzonti do Festival de Veneza (uma das seções paralelas à briga pelo Leão de Ouro), essa aventura existencialista foi eleita Melhor Filme Latino-Americano no Festival de Mar Del Plata, e ganhou prêmios no IndieLisboa e em Hainan, na China.
"Fizemos um filme mutante, que não tem uma forma única, movido pela plena fricção, mas que aponta para uma certa sensação universal de solidão ao apostar no desamparo de uma mulher que escapa de sua vida", definiu Citarella ao Correio da Manhã no Festival de San Sebastián, na Espanha, onde "Trenque Lauquen" encheu-se de elogios. "Existe uma tradição nas criações da produtora Pampero de nos abrirmos mais a diálogos com o próprio cinema do que com cicatrizes sociais".
Produtora prolífica e diretora do ótimo "La Mujer De Los Perros" (2015), Citarella estrutura seu filme a partir do sumiço de Laura (vivida por Laura Paredes, também roteirista). Sabemos que ela desapareceu quando dois homens se engajam numa busca obsessiva por ela. De um lado está seu namorado, Rafael (Rafael Spregelburd). Do outro, encontra-se um amigo dele, Ezequiel (Ezequiel Pierri), cujo carro foi levado embora pela desaparecida.
Tudo indica que ela possa estar em Trenque Lauquen. É para lá que a dupla parte, interrogando diversos habitantes da região. Em meio a esse processo quase detetivesco, saltamos para um exercício de memória por parte de Ezequiel, que pode ter sido a mola propulsora desse sumiço, após a descoberta de cartas eróticas numa biblioteca. Nessas cartas nasce o mistério de uma outra personagem, uma tal de Carmen, que esteve na área há décadas. Nada parece fechar com nada nesse enredo, que evoca "Twin Peaks", de David Lynch, mas há um clima de mistério que nos prende na forma como Citarella se esgueira por rotinas aparentemente banais, mas cheias de segredo. Tem ainda uma rádio onde Laura mantinha uma comunicação, além do seu espaço de trabalho no Departamento de Transportes do governo, e no seu trabalho de pesquisa em biologia vegetal.
"A hipótese central de 'Trenque Lauquen' é conhecermos o impacto da decisão de alguém que resolveu viver outras vidas. Como a pessoa que toma essa atitude, num país sul-americano, é uma mulher, a ideia de que ela ficou louca é a primeira sensação que as pessoas têm, dado o ranço machista no continente", disse Citarella, numa alusão ao sexismo latino. "O desespero de viver mais é o que move Laura e, embora o filme acompanhe os esforços de dois homens, é a perspectiva de uma mulher que move tudo. O que eu busquei foi tentar narrar um mesmo episódio por miradas distintas, e mostrar alguém que pode caminhar sem objetivo, mas, sim, em busca de um sentido existencial".
Num outro registro cinéfilo (a chanchada), um outro sucesso argentino brilha no streaming nacional: "30 Noites Com a Minha Ex" ("30 Noches Con Mi Ex", 2022), de Adrián Suar. Dirigida por um dos comediantes de maior prestígio na Argentina, essa comédia romântica foi um fenômeno popular em sua pátria, apoiada no carisma de Pilar Gamboa. Ela e Suar vivem um casal separado há três anos, com uma filha adulta. Ele, Turbo, é um investidor de sucesso na bolsa de valores. Ela, Loba, é cantora. Mas sua vida foi pro beleléu depois que ela passou por surtos esquizofrênicos dos quais não se recuperou. A fim de ajudá-la, sua psiquiatra recomenda que Loba passe um mês morando com Turbo, mas essa volta dela ao lar gera desastres.