Manuais de filosofia definem o "mito da caverna" de Platão como a parábola mais essencial para o entendimento da manipulação do olhar (e das ideias) por aparências, o que leva a uma analogia com as fake news dos tempos atuais, na troca de falácias por grupos de whatsapp que se recusam a ver o mundo por perspectivas plurais como as retratadas no filme "Uma Alegoria Urbana".
Poema compacto, com 21 minutos de duração, a produção estreou no Festival de Veneza e chegou ao Brasil via MUBI, promovendo um debate sobre a submissão a discursos (os de ódio, sobretudo) expressos por estratégias visuais.
Parceiros no belo "Omelia Contadina", de 2020, a cineasta italiana Alice Rohrwacher ("Feliz Como Lázaro") e o artista visual francês JR (de codiretor de "Visages Villages" com a deusa Agnès Varda) unem forças novamente na direção desse ensaio de verve platônica em cartaz no www.mubi.com.
Paris se desvela em cena diante deles, no processo de alfabetização do olhar de um menino, Jay, vivido por Naïm El Kaldaoui. "A cidade é a nossa protagonista, retratada como um caleidoscópio, o que nos leva a uma série de imagens dela na introdução da narrativa, para entendermos como o garoto vê o mundo e o que vai se passar de diferente com sua mirada", explica Alice ao Correio da Manhã, em papo via Zoom ao lado de JR.
"Logo que começamos a falar de uma jornada singular de descoberta, pensamos em sombras, em dança, numa bailarina", diz o fotógrafo e realizador de origem tunisiana, cujas iniciais significam Jean-René. "Foi Agnès Varda que nos apresentou e imagino que ela ficou feliz de ver que a gente combinasse as potências", explica, referindo-se à diretora de "Cléo das 5 às 7" (de 1962), morta em 2019.
Indicada ao Oscar de Melhor Curta de Ficção em 2023 por "Le Pupille", Alice mescla suas teses estéticas com as de JR abrindo uma reflexão poética sobre os preconceitos da cultura europeia, mesmo com o forte intercâmbio cultural com imigrantes, em função de intolerâncias históricas e falta de empatia. Na trama de "Uma Alegoria Urbana", Jay precisa acompanhar sua mãe (Lyna Khoudri) a uma audição para um balé. O diretor do espetáculo é vivido pelo mítico cineasta Leos Carax ("Holy Motors"), que voltou às telas em 2024 com o .doc experimental "Não Sou Eu". Inédita em circuito nacional, essa produção passou aqui em outubro, na Mostra de São Paulo, em sessão dupla com o filme de Rohrwacher e JR. A escalação do realizador de "Os Amantes de Pont-Neuf" (1991) e "Pola X" (1999) foi motivado pelo caráter transgressor de sua investigação do real. "A linguagem cinematográfica mexe com instintos primevos da humanidade, mas sofre abalos sempre que uma nova abordagem tecnológica da forma de narrar é proposta, por uma necessidade da indústria de maquinizar a liberdade. Romper com os códigos binários do mercado, ou seja, 'lucro' e 'prejuízo', é a melhor forma de reinvenção da arte de filmar", disse Carax ao Correio, em sua passagem pelo Brasil, em 2012, no Festival do Rio.
"Convocamos Leos porque ele é um fugitivo da caverna", diz Alice. "A filmografia dele rompe com os grilhões da imagética".
Ao longo da construção de "Uma Alegoria Urbana", o pequeno Jay passa por uma vivência similar a dos personagens de Platão: aprendem que as visões que acreditavam ser verdades absolutas não passam de apreensões não postuladas (portanto, relativas) do mundo.
"No cinema convencional, há um vetor narrativo que força nosso olhar numa direção, numa só verdade", explica Alice. "O projeto que move desse filme é mostrar que existem outras perspectivas numa história, numa sequência, num plano".