Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O forte do menu: invenção

'A Cozinha', de Alonso Ruizpalacios, é um microcosmode tensões sociais envolvendo imigração | Foto: Divulgação

Ignorado pelo circuito exibidor apesar de ter se consagrado como iguaria (das mais polêmicas) na última Berlinale, "A Cozinha" ("La Cocina") chega ao Brasil nesta sexta-feira, via streaming, na plataforma Max. O Festival de Berlim salivou e lambeu os beiços com a exibição dessa iguaria na disputa pelo Urso de Ouro. A direção é de Alonso Ruizpalacios. Em 2018, ele saiu premiado da Alemanha pelo roteiro de "Museu" e, em 2021, conquistou o Prêmio de Contribuição Artística, dada à montagem de seu "Um Filme de Policiais", lançado pela Netflix.

Nenhum dos dois chega aos pés de seu novo e exuberante longa-metragem, que é falado parcialmente em Inglês, é ambientado em Nova York, mas se concentra na vida de migrantes hispânicos num ambiente de xenofobia.

"Venho da classe média do México, filho de um médico", disse Ruizpalacios ao Correio da Manhã, quando "A Cozinha" ainda estava no papel. "Não saberia falar das favelas do meu país, de modo a abordar com verossimilhança as relações de opressão em ambientes periféricos, mas tenho interesse em falar do mundo que conheço, da realidade mexicana que me cerca. O México é uma nação muito complexa e eu quero celebrá-la".

Neste momento em que a série "O Urso" ("The Bear"), com Jeremy Allen White, faz tanto sucesso (na Disney ) ao explorar as tensões de quem vive do verbo cozinhar, "La Cocina" consegue dar uma abordagem inusitada (e sociopolítica) ao tema, apoiada numa engenharia de filmagem ousada. Numa aeróbica de câmera, que lembra o "Birdman", de seu conterrâneo Alejandro González Iñárritu, o filme de Ruizpalacios aposta num preto e branco contínuo, temperado de chiaroscuros pela cinematografia de Juan Pablo Ramírez, à exceção de um ou dois efeitos (azulados) que se fazem notar na tradução das graves crises mentais de um de seus personagens centrais, o cozinheiro Pedro. O papel é interpretado por Raúl Briones.

Poço de carisma, Pedro é uma das estrelas dos bastidores do sempre lotado The Grill, casa onde se come o melhor Frango Marsala de NY e o "podrão" mais gourmetizado dos EUA. No fogão e na grelha, o anti-herói de Ruizpalacios (destaque de uma narrativa coral, na qual todo personagem tem seu solo) está sofrendo. Ele vive uma convulsão afetiva, ao saber que sua namorada, Julia (papel de Rooney Mara, de "Carol"), atendente desse empório gastronômico, quer fazer um aborto.

Sempre tenso, o chef do estabelecimento, vivido por Lee R. Sellars, é o líder e uma tropa de funcionários de diversos cantos do mundo (sobretudo de Guadalajara, Acapulco e Cidade do México). Mesmo ocupando um cargo de liderança, ele carece de empatia. Apesar de tudo, Julia se sai bem com ele e com as colegas, fazendo um truque inusitado com os cigarros que não lhe saem da boca. O problema é que a panela de pressão emocional de Pedro não dá conta das turras em que vive com ela, com o patrão e com os vetores de exclusão que o cercam. Uma acusação de roubo só piora sua vida, mas faz "La Cocina" entrar numa espiral sociológica naturalista que ferve, a temperaturas altas, todas as angústias latinas da atualidade. Teve gente que se incomodou com a crueza com que o filme expõe corpos e com a selvageria de sua edição, mas reside nela sua potência plástica.

Mesmo diante de todo o viço de Ruizpalacios, o México preferiu escalar outro filme, "Sujo", de Astrid Rondero e Fernanda Valadez, para ser seu candidato oficial na disputa por uma vaga na corrida do Oscar. Acabou ficando de fora da primeira peneira da Academia de Hollywood, que vai anunciar seus concorrentes no próximo domingo. Laureado nos festivais de Sundance e de San Sebastián, este thriller social à la "Cidade de Deus" acompanha o amadurecer de um garoto cujo pai é morto pelo envolvimento com cartéis. Adolescente, ele tenta refazer a vida e estudar, com a ajuda de uma professora idealista, mas o chamado da violência parece forte demais.