Com estéticas, temáticas e ambientações distintas, "Ainda Estou Aqui" (hoje com 3,3 milhões de pagantes em seus borderôs de receitas) e "O Auto da Compadecida 2" (que ultrapassou a marca de 3 milhões de ingressos vendidos) têm em comum a presença de um ator encarado como sinônimo de excelência... e (cada vez mais) de popularidade: o mineiro Selton Mello. Até em sua trajetória como realizador, ele soube emplacar blockbuster, vide a multidão (1.415.793 espectadoras/es) que prestigiou seu lúdico "O Palhaço" (2011).
Diante de todo o êxito que ele faz hoje em circuito, era de se esperar que streamings resgatassem as iguarias de sua carreira. A MUBI, por exemplo, foi fundo e descolou uma parceria dele com Júlio Bressane, sob a ótica de Machado de Assis: "A Erva do Rato". É uma produção indie lançada no Festival de Veneza em 2008, de tons metafísicos no qual dois estranhos (Mello e Alessandra Negrini) se encontram num cemitério e embarcam numa ciranda de conversa e fotos, acossados por um camundongo.
No mesmo ano, o astro nascido em Passos (MG) estrelou o êxito comercial "Meu Nome Não É Johnny", de Mauro Lima, que hoje bate ponto na Amazon Prime. Já a Netflix apostou em "Billi Pig", um tributo do diretor José Eduardo Belmonte às chanchadas que inaugurou a Mostra de Tiradentes em 2012. Essa é uma seleção que traduz a pluralidade de Selton, cujo ferramental dramático só passou a ser notado (e celebrado) pelo cinema só em 2001, quando "Lavoura Arcaica" estreou. Depois de um longo período restrita a grade de cinematecas, essa joia caiu na streaminguesfera: tá no Globoplay.
Não se entende Selton sem ela, pois tudo de mais radical que ele gerou, atuando e dirigindo (como a série "Sessão de Terapia"), tem a adaptação do romance homônimo de Raduan Nassar como motor de arranque.
Seu enredo nasceu como literatura em 1975 e virou cinema pelas mãos de Luiz Fernando Carvalho ("A Pedra do Reino"), em filmagens iniciadas no fim dos anos 1990.
Em universidades, no âmbito acadêmico, a linguagem de Nassar foi saudada como sendo "uma revelação, dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa", segundo o professor e crítico Alfredo Bosi (1936-2021). Já o longa conquistou 52 prêmios mundialmente, em Biarritz, Havana e Montreal, tendo sido projetado no prestigiado Festival de Roterdã.
Recém-saído do devastador "A Paixão Segundo GH" (adaptação do romance homônimo de Clarice Lispector), Luiz Fernando é o mais revolucionário diretor novelas e microsséries que a TV brasileira já conheceu. Sua "Lavoura Arcaica" foi um divisor de águas na forma de se narrar com a luz (da câmera) neste país.
Em 1995, após cinco anos de degredo nas atividades cinematográficas do país, por conta da extinção da Embrafilme (distribuidora e fomentadora), numa canetada do então presidente Fernando Collor, o filme "Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil" reinaugurou o sonho de se filmar com continuidade e excelência no país. A vigência da Lei do Audiovisual abriu as comportas para novos talentos. Saído de novelas e de especiais cultuados, como o folhetim "Renascer" (1993) e o bangue-bangue "Os Homens Querem Paz" (1991), Luiz Fernando enveredou pelos longas dialogando, a partir de imagens em movimento, com a prosa de Raduan. Em seu lançamento, esse drama de timbre existencialista revolucionou noções plásticas de nosso audiovisual, na fricção do Tempo e do Espaço, conquistando seis Candangos no Festival de Brasília, incluindo o de Melhor Filme (empatado com "Samba Riachão").
Espécie de estudo semiológico sobre a instituição família e sobre a ancestralidade, "Lavoura Arcaica" provoca um misto de euforia e desalento, quase como em um paradoxo. As duas sensações são afluentes de uma mesma e caudalosa água: a liquidez da transgressão. A euforia se dá pelo fato de o choque estético causado pelo discurso de Raduan em Luiz Fernando ter conduzido o cineasta a filmar da maneira mais pessoal possível, sem fronteiras mercadológicas e sem compromissos teóricos. A razão do desalento: a incômoda impressão de o longa parecer um caso isolado de invenção em nosso cinema, de uma potência jamais igualada.
Poucos foram os realizadores que se devotaram tanto à busca por uma sintaxe inovadora capaz de conciliar a fúria criativa da palavra literária com o apetite voraz da câmera. A feliz comparação deste diálogo do audiovisual com o texto de Raduan Nassar com "Limite" (1931), de Mario Peixoto, apontada em sua estreia, no site "No.", pelo crítico Carlos Alberto Mattos, torna-se ainda mais pertinente conforme a produção contabiliza primaveras. Ambos falam de tempo. Ambos tratam tempo como Tempo, com o T maiúsculo que ressalta sua divindade.