Cerca de seis anos depois de sua primeira projeção mundial, na telona do Festival de Brasília, "Piedade", o momento Fassbinder de Cláudio Assis, ganha o reforço da Prime Video para fazer do streaming mais do que um lugar de pouso. Na plataforma da Amazon, há espaço nobre para um dos longas-metragens mais belos do cineasta pernambucano conquistar holofotes à altura de seu esplendor e arrebatar olhares que não teve chance de atrair em circuito. Sua estreia comercial foi penalizada pela pandemia.
Sua migração para a streaminguesfera coincide com a dose extra recente (e merecida) de badalação em torno de uma de suas atrizes, aliás, "A" atriz, Fernanda Montenegro. Sua presença no ganhador do Oscar "Ainda Estou Aqui" e o lançamento de "Vitória" ampliaram o interesse da mídia por sua atuação.
Ela reforçou o rol de estrelas no currículo de Assis, que, em 2002, tomou o Brasil de assalto com "Amarelo Manga" (2002). Há na filmografia dele - elevada às alturas da excelência com "Baixio das Bestas", ganhador do Tiger Award de Roterdã, em 2007 - um canteiro para tubarões, animal mencionado várias vezes em "Piedade", associado sempre à ideia de ganância e desajuste social. Sua fera mais faminta é o executivo de uma petrolífera, que bebe uísque com o júbilo da ostentação. Aurélio, essa máquina de matar, é o mais devastador papel (e a mais luminosa atuação) de Matheus Nachtergaele.
É pelo litoral de Piedade que Aurélio ataca: o título do filme é o nome de uma utopia praiana. O roteiro dessa utopia é escrito por Anna Francisco, Dillner Gomes e Hilton Lacerda e dele saem pérolas como "E sexo fede desde quando? Sexo é cheiroso".
No longa, essa tal praia com nome de sentimento é alvo do apetite da corporação para a qual Aurélio trabalha, sempre reportando suas andanças (e suas corrupções) à sua mãe, de quem disfarça sua orientação sexual. A tal big mama, igualmente intolerante, vivida por Denise Weinberg, não esconde sua homofobia quando suspeita que homens sem camisa frequentam o quarto de seu filhinho. Apesar das carapuças de que se esquiva, Aurélio veste com prazer, no âmbito profissional, a máscara de predador.
Sua presa preferida, com perfil de iguaria, é o exibidor Sandro, papel que faz Cauã Reymond passar, de uma vez por todas, aos altares do risco e da exuberância cênica. Se existe, em "Piedade", um lugar de heroísmo, de virtude, esse lugar pertence a Sandro, que gravita pelo liberalismo do amor. A morada dele é um cinema pornô, onde reside a autoralidade mais fina de Assis, como o grande realizador que é: sua obra, como uma vez definiu Nachtergaele, é sobre "como a gente trepa errado e sobre como a gente ama errado". Aliás, trepadas raras vezes ganharam luz mais linda do que a iluminação empregada pela fotografia de Marcelo Durst para desenhar o tônus lírico da querência dos corpos de Assis.
Em geral, em seus filmes, relações sexuais são associadas ora à brutalidade, ora ao revanchismo (como o fio terra com uma escova de cabelo em "Amarelo Manga"), ora à escatologia (como a urina numa banheira onde um poeta come mulheres idosas em "Febre do Rato"). Em "Piedade", o sexo ferve a banho-maria: é intenso, mas tem cumplicidade. O sexo une Aurélio e Sandro numa beleza coroada pela hipocrisia de um e a coragem de outro. Aurélio pode seguir sendo tubarão porque esconde seu querer, numa lógica submissa de homofobia e podridão moral. Sandro, por sua vez, assume quem é, tendo sido expulso de seu lar adotivo por isso. Mas não guarda mágoas. Ele é pura potência, pois deseja e obedece às suas vontades.
Existe, aí, no quadrante de prazeres e de cicatrizes de Sandro, uma parentela entre "Piedade" e o já citado Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), cineasta alemão, pilar essencial ao castelo do melodrama. Mas a parentela se dá não com o Fassbinder das obras consagradas (tipo "Lili Marlene" ou "O Casamento de Maria Braun"), mas sim o Fassbinder da bile, o de "Roleta Chinesa" ("Chinesisches Roulette", 1976) e o de "O Machão" ("Katzelmacher", 1969).
É o melodrama do azedume, com o cheiro do adstringente que Sandro encomenda para diluir o aroma de ejaculação em seu cinema pornô. Aquela casa de tolerância avinagrada a fotogramas lembra o cineminha erótico retratada pelo diretor filipino Brillante Mendoza em "Serbis" (2008), mas com um sotaque de Brasil. Um Brasil de erosões e de abandono: nele, a veia melodramática do filme de Assis vem à tona quando Sandro (numa apoteótica gestualização de Cauã) descobre ter uma mãe biológica ainda localizável. Seu desafio é buscar seu paradeiro. Um paradeiro em que Fernanda Montenegro nos ilumina, e abre caminhos para que a forma de Assis filmar seja redescoberta e rediscutida.