Um Charles Bronson à brasileira
Estreia de 'Oeste Outra Vez' abre espaço em plataforma digital para o longa anterior do diretor Erico Rassi, 'Comeback', que traz Nelson Xavier na pele de um matador

Laureado com o Kikito de Melhor Filme no último Festival de Gramado pela demolidora mirada sob os códigos da masculinidade, "Oeste Outra Vez" estreou no último fim de semana atraindo holofotes para a obra de seu diretor, o goiano Erico Rassi. O interesse por seu modo autoral de devassar instituições (morais) a partir da geografia do Centro-Oeste assegurou espaço a seu longa-metragem anterior, "Comeback" (2016), num streaming faminto por brasilidade, o Sesc Digital.
A plataforma digital do Sesc São Paulo pode ser acessada em todo o país, pelo site sesc.digital ou por meio do aplicativo Sesc Digital, disponível para download nas lojas Google Play e App Store. Tem muita pérola por lá (como "Luz Nas Trevas", de Helena Ignez, e "Paradise Now"), mas a de Rassi se impõe por ser o canto de cisne de Nelson Xavier (1941-2017), um dos maiores atores do país.
Espécie de cerimônia do adeus disfarçada de thriller, centrada na ética dos matadores de aluguel, "Comeback" rendeu a Xavier o troféu Redentor de Melhor Ator no Festival do Rio de 2016, num empate com Julio Andrade (laureado por "Redemoinho" e "Sob Pressão"). Visto em sucessos de bilheteria como "Chico Xavier" (2010), o ator paulista que foi o Lampião da TV Globo trazia no currículo troféus em Gramado e em Brasília (por "A Despedida" e "O Mágico e o Delegado"), além de ter um Urso de Prata, dado a ele e a Ruy Guerra na Berlinale de 1978, por "A Queda".
Rassi soube extrair o melhor dele em sua imersão numa narrativa digna de "Onde Os Fracos Não Têm Vez" (2007), dos irmãos Coen. Não teve medo de diluir os signos cinéfilos da violência - qual os Coen fazem sempre.
Mesmo nos mais ferrenhos debates sobre a necessidade do "filme de gênero" no cinema brasileiro, é raro se ouvir falar na importância do thriller de ação como um caminho para mobilizar plateias, apesar de toda a importância que o filão teve para a educação audiovisual das gerações criadas nos anos 1980 e 90.
Sob esse (e outros) prisma(s), "Comeback" merece loas: além de ter uma série qualidades em termos narrativos, a produção dirigida por Rassi é um exemplar nacional raro da linhagem da adrenalina. Lembra aquelas fitas com Charles Bronson (1921-2003) do "Domingo Maior" de outrora, tipo "Jogo Sujo" (1973).
Narrativa crepuscular afinada coma percepção da finitude, "Comeback" põe Xavier na pele de um matador de aluguel. Toca Altemar Dutra e dá para se ouvir Manolo Otero, como indícios de um ranço breganejo em um universo no qual matar dá orgulho. A trilha sonora dá um cheiro de nostalgia a esse neowestern. Sempre atento à ideia do sucateamento de valores pretéritos, a direção de Rassi flerta com as cartilhas de filmes de ação mais artesanais, como os cults de Don Siegel "(Os Impiedosos") e (sobretudo) de Michael Winner ("Desejo de Matar"), com direito à criação de um personagem maior do que o filme: Amador, o gatilho relâmpago (hoje enferrujado) vivido por Xavier. Seu carisma serve de bússola a um percurso por veredas que um dia foram banhadas a sangue.
Muita gente diz que ele pintou e bordou quando moço, de arma na mão. Uns dizem que ele é só um poço de bravatas. Há quem enxergue nele um ferrabrás (ainda) a ser temido. O enredo filmado por Rassi acompanha as estratégias se sobrevivência de Amador na conjuntura das maquininhas de caçar níqueis e de seu desejo de assassinar de novo, por respeito. Sua luta espelha o pecado do etarismo, que ainda é cometido pela sociedade brasileira em desrespeito a pessoas que viveram muitas primaveras. Amador é uma delas. Das mais perigosas.