Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Kraven caça noutras selvas

Aaron Taylor-Johnson empresta seu carisma a Kraven, que usa sua destreza sobre-humana para caçar mafiosos | Foto: Marvel/Divulgação

Embora ocupe o segundo lugar no ranking das maiores arrecadações de 2025, atrás apenas da bilionária receita (cerca de US$ 1,9 bilhão) da animação chinesa "Ne Zha 2", "Capitão América: Admirável Mundo Novo" faturou menos do que o esperado... bem menos, aliás... apesar de já contabilizar US$ 409 milhões. Nem a presença de Harrison Ford, transformando-se no Hulk Vermelho, assegurou à Marvel a fortuna pela qual ansiava. A sirene de perigo acerca do futuro das narrativas de super-heróis hoje soa em volume máximo.

As salas de exibição que outrora transformavam qualquer vigilante (ou anti-herói) de HQs numa mina de ouro parecem já não dar tanta bola para a oferta (inesgotável) de títulos oriundos dos quadrinhos. Já o streaming... Nas plataformas digitais, produções com DNA nas artes gráficas de balãozinho que sofreram a esnobada da cinefilia encontram lar... e ressonância. O caso exemplar é "Kraven, o Caçador" (2024).

O carisma do ator Aaron Taylor-Johnson não salvou essa (eletrizante) aventura de um destino trágico em circuito, mas, agora, a streaminguesfera garante ao longa-metragem uma chance de êxito popular. Há como vê-lo, por comprar ou aluguel, na Apple TV (iTunes), na Amazon Prime, na Claro TV , no Google Play, no Vivo Play e ainda na Microsoft Films & TV.

Ao contrário do Duende Macabro e do Doutor Octopus, cujos planos são movidos por cobiça, a sanha criminosa de Sergei Nikolaevich Kravinoff (vivido por Aaron) é alimentada apenas por vaidade, uma vez que riqueza nunca lhe faltou. Pelo menos não pelo que lemos nas histórias em quadrinhos. Filho de uma aristocrática família russa, ele embarca para as América no espocar da Revolução de 1917, sob o eco das palavras de Lênin. Longe de casa, desenvolve um instinto competitivo (letal) sublimado na caça. Uma poção vodu faz com sua força e sua destreza se ampliem a níveis sobre-humanos, o que amplia seu apetite por presas que extrapolem as condições normais de temperatura e pressão da Natureza, como o Homem-Aranha. Ter a cabeça do aracnídeo em sua parede de troféus é a consagração de um histórico de desafios à fauna terrestre. Para alcançar esse desafio, Kravinoff passa dos limites e põe a própria sanidade em xeque.

Desde 1964, Kravinoff, ou Kraven, está no encalço do Aranha. Apareceu em agosto daquele ano, na revista "The Amazing Spider-Man" n° 15, e partiu para outros alvos, como a Garota-Esquilo, o Pantera Negro e a combativa Tigra. Ao longo dos anos, a Marvel inventou um laço de fraternidade entre ele e outro ferrabrás igualmente insano, o Camaleão, apresentado como seu meio-irmão.

O momento de maior relevo de Sergei na cultura pop - e que inspira o longa de J.C. Chandor, hoje ao alcance do streaming, é a saga "Kraven's Last Hunt", lançada em 1987 por J. M. DeMatteis, Mike Zeck e Bob McLeod, inspirada pela literatura de Dostoiévski. Na trama, Kraven chega ao limite máximo de sua insensatez na ambição de matar o Aranha e prende o vigilante (então trajado com seu uniforme negro), submetendo-o a um ritual de humilhação. No processo, Kraven perde de vez a razão e morre. Anos depois ele regressa como fantasma na graphic novel "The Amazing Spider-Man: Soul of the Hunter", também do trio DeMatteis, Zeck e McLeod. Graças a essa produção dramatúrgica em papel, o filme com Aaron teve a chance de ser feito. Custou cerca de US$ 110 milhões e faturou apenas US$ 62 milhões, prejudicado por uma campanha de difamação de sua qualidade estética. Revisitado agora, surpreende. Em 1998, um outro coadjuvante do Aranha, o vampiro Blade, colocou a pedra fundamental na linhagem de narrativas audiovisuais inspiradas em super-heróis ou em seu arqui-inimigos. Foi Wesley Snipes quem começou tudo. Seu êxito nas bilheterias acionou o interesse da indústria audiovisual pelos tesouros dramatúrgicos da Marvel, autorizando Sam Raimi a filmar "Spider-Man", com Tobey Maguire, e Bryan Singer a rodar "X-Men - O Filme". Ambos se tornaram fenômenos e ganharam (muitas) sequências.

A sucessão de acertos de arrecadação milionária motivou o lançamento do Marvel Studios, em 2008, com "Homem de Ferro", que inaugurou a onda das cenas pós-crédito. Naquele mesmo ano, o diretor inglês Christopher Nolan bateu a barreira do bilhão com "Batman - O Cavaleiro das Trevas", da DC Comics, rodado sob o selo da Warner Bros. A chegada de "Os Vingadores", em 2012, consolidou de vez a égide dos justiceiros da arte sequencial nos écrans. Para coroar essa excelência, "Logan" (2017) fechou a Berlinale e disputou o Oscar de Roteiro Adaptado e "Coringa" (2019) ganhou o Leão de Ouro de Veneza.

Em 2022, a fria acolhida a "Thor: Amor e Trovão", de Taika Waititi, deu o primeiro indício de um cansaço da parte de espectadoras/es diante do excesso de ofertas ligadas à ficção quadrinística dos EUA. Desastres de faturamento com "Quantumania", "Flash", "As Marvels" e "Aquaman 2: O Reino Perdido", todos em 2023, reforçaram a catástrofe anunciada, que se agravou com a fria recepção dada a "Coringa: Delírio a Dois", em outubro. Espera-se que "Superman: Legacy", com David Corenswet no papel do último Filho de Krypton, salve essa pátria.