Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Era dos extremos

Molly (Crista Alfaiate) se embrenha pelo sudeste asiático em 'Grand Tour ' | Foto: Uma Pedra No Sapato/Divulgação

Ao ter seu nome anunciado pela atriz e cineasta Greta Gerwig quando o júri do Festival de Cannes de 2024 foi divulgar o ganhador do Prêmio de Melhor Direção, o português Miguel Gomes reagiu com um desabafo: "Às vezes, eu tenho sorte". Ganhou na Croisette com "Grand Tour", que estreia no Brasil nesta sexta-feira, na grade da plataforma MUBI.

Pelo esplendor visual em preto e branco de sua reconstituição de época e por seu rigor na análise de sanhas burguesas em terras estrangeiras, o filme se impõe na tela com múltiplas destrezas técnicas que excluem, à primeira vista, a intervenção do acaso na vitória de seu realizador. Crítico de cinema na década de 1990, Gomes tem sido "sortudo" já faz tempo. Sua fortuna profissional vem desde que seu longa de estreia, "A Cara Que Mereces" (2004), tomou festivais na França e na Romênia de assalto, conquistando láureas "em casa", no IndieLisboa. Na sequência, o ensaio documental "Aquele Querido Mês De Agosto" (2008) virou sensação na Semana da Crítica de Cannes, pavimentando sua história de sucesso no balneário.

"Eu me sinto familiarizado com outros cineastas, sobretudo os que têm um universo próprio. No caso de 'Grand Tour', percebi que estava construindo a saga de pessoas que falam muito, mas não escutam nada. No fim da montagem, entretanto, extraímos dela outros sentidos", diz Miguel ao Correio da Manhã, em entrevista via Zoom promovida pelo www.mubi.com.

Rodado parcialmente em locações, parcialmente em estúdio, para equacionar a produção em terras asiáticas, "Grand Tour" contou com três diretores de fotografia: Gui Liang, Sayombhu Mukdeeprom e o mestre lusitano da luz Rui Poças. Sua trama se passa em Mianmar (outrora Birmânia), país do sudeste asiático que foi abalado por terremotos no fim de março. O período histórico em que Miguel finca bandeira é 1918, logo após o fim da I Guerra Mundial, ainda com fantasmas coloniais pela Ásia. Ambienta sua jornada em Rangum (ou Yangon), que, àquela época, era uma cidade sob o domínio colonial britânico. Um de seus personagens centrais, o funcionário público Edward (Gonçalo Waddinton), vai parar lá após abandonar sua noiva, Molly (Crista Alfaiate) no dia em que iriam se casar. Tomado pela melancolia, ele foge das bodas num local distante do Velho Mundo, cercado de outros paradigmas culturais. Determinada a casar, Molly segue o rastro do noivo. Mergulha num mundo que não é o seu, de códigos avessos aos seus. Lá, a jovem se apaixona por si e encontra novas alegrias para rir - do seu modo peculiar.

"Meu interesse não era fazer uma reconstituição histórica, mas, sim, mostrar pessoas perdidas no tempo e no espaço", diz Miguel.

Num material promocional para a Cinemateca Portuguesa, ele explicou que a gênese do longa vem de um livro de viagens publicado pelo escritor inglês W. Somerset Maugham (1874-1965) em 1935: "A Gentleman in the Parlour". O cineasta escreve: "Em duas páginas deste livro, Maugham relatava o encontro com um inglês residente na Birmânia. Este tinha fugido da sua noiva pela Ásia afora antes de ser apanhado, iniciando um casamento feliz... No fundo tratava-se de uma anedota, jogando com estereótipos universais. A teimosia das mulheres vencia a covardia dos homens. O trajeto desta perseguição seguia a rota do grand tour. No início do século XX, o 'grand tour asiático' denominava o percurso iniciado numa das grandes cidades do império britânico na Índia, que se estendia até ao Extremo-Oriente (China ou Japão). Muitos viajantes europeus fizeram o grand tour".

"Esse filme opera todo o tempo com oposições, que se desenham a partir do ponto de vista com que se olha para aquele território. Existe uma dialética entre o que o mundo nos dá e o que damos de volta a ele", diz Miguel, que abordou a colonização empreendida por Portugal em "Tabu", sensação da Berlinale de 2012, que saiu de lá com o (hoje extinto) troféu Alfred Bauer (dado a experimentações de linguagem) e o Prêmio da Crítica. "Na construção de 'Grand Tour', trabalhamos com pesquisa, mas tentamos fugir de superficialidades, com Crista Alfaiate a agregar elementos a partir de sua interpretação".

Os primeiros longas de Miguel podem ser vistos no Brasil no streaming Reserva Imovision. No Prime Video da Amazon é possível alugar ou comprar "Diários de Otsoga", lançado por ele em Cannes, em 2021, em codireção com Mareen Fazendeiro.