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Nocaute em quadrinhos

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Semelhante a bons filmes com Jean-Claude Van Damme, responsáveis por lotação esgotada no circuito exibidor do fim dos anos 1980 e início dos 90, tipo "O Grande Dragão Branco" (1988) e "Garantia de Morte" (1990), a HQ "Arena" desafia leis da gravidade ao quadrinizar lutas das quais nenhum Minotauro, Zé Aldo ou Anderson Silva conseguiria se safar com facilidade.

Pelo menos não como Rômulo Cruz, o Triturador, faz. Escondido no anonimato de uma rotina que se bifurca entre dar aulas numa academia e observar a garota de programa Ana Maya fazer strip, na noite paulistana, esse dínamo da ação só põe sua fúria para fora quando a injustiça dá as cartas. Aí age como se fosse um vigilante da Marvel ou da DC.

Mas traumas do passado encasulam Rômulo num limbo sem o charme altruísta dos super-heróis ou o glamour do esporte. É assim até um vídeo em que ele encara agressores vaza na web, transformando-o em celebridade. O que vai nascer daí é uma fera dos octógonos... e uma graphic novel que vem fazendo a crítica babar à força do realismo no traço P&B do desenhista Alan Patrick e nos roteiros de Alexandre Callari. Ele concebeu a saga de seu protagonista como literatura, para ser um romance, mas recorreu à parceria com Patrick para injetar potência imagética a uma narrativa de superação. O produto da alquimia criativa entre eles rendeu um álbum gráfico editado luxuosamente pela Pipoca & Nanquim, com alusões a "Rocky, um Lutador" (1976).

Um dos sócios-fundadores da editora e canal de Youtube Pipoca & Nanquim, Callari - que já editou gibis do Batman, Flash e Arqueiro Verde para a Panini - fala ao Correio da Manhã sobre o universo do Triturador.

O que o MMA oferece como dramaturgia e o que representa como um microcosmo?

Alexandre Callari: Qualquer prática esportiva oferece um escopo grande em termos narrativos, em especial se a história girar em torno de temas como redenção, superação, crescimento físico e espiritual, relações interpessoais etc. Há inúmeros filmes que versam sobre o assunto; muitos deles baseados em fatos reais. Mas o MMA, por ser uma evolução natural das práticas de combate desarmado, que fazem parte de dezenas de culturas do mundo inteiro, há milhares de anos, possui uma leitura adicional que estaria carente em um filme sobre, digamos, golfe, hipismo, ou mesmo algum esporte coletivo, como futebol. Os lutadores de MMA são, não raro, tidos como "gladiadores modernos", herdeiros de uma tradição que atiça a curiosidade das pessoas ao remontar às guerras da Antiguidade, quando o valor de um guerreiro era medido pela sua capacidade de se destacar em combate. Existem resquícios desse pensamento em todos nós, por mais maniqueísta que ele seja, e a própria ideia em si é atrativa. Numa camada superficial, parece que um combate de MMA é vazio; não passa de dois sujeitos se estapeando dentro de uma jaula. Uma leitura bidimensional introduz elementos que são citados, mas não compreendidos, como honra e o caminho do guerreiro. Mas uma análise profunda evidencia um dos cenários mais ricos para um drama moderno. De várias maneiras, a trajetória de um lutador de ponta se confunde com a própria "Jornada do Herói", de Joseph Campbell.

Qual é a dimensão de heroísmo que existe em "Arena"?

"Arena" é 100% heroísmo. Meu background de leitura de HQs vem do mundo dos super-heróis. Eu não só cresci com esse tipo de leitura, aquela coisa mágica que a Marvel e a DC produziram nos anos 1980, como meu ingresso no meio editorial foi editando super-heróis (majoritariamente, o Batman). Esse tipo de coisa está gravado no meu DNA, o ritmo que a aventura precisa, o comportamento do protagonista, seus "desafios" e fraquezas, a necessidade de um vilão etc. Embora não possua nenhum elemento místico ou sobrenatural em "Arena", é possível fazer uma leitura dele que, em última instância, herda a tradição dos super-heróis nos quadrinhos, respeitando a mesma dinâmica desse tipo de história.

Qual é a maior dificuldade de fazer uma narrativa realista no quadrinho brasileiro?

Para mim, são os personagens. A fragilidade deles, sua personalidade sendo delineada não por meio de balões de texto, mas, sim, de modo orgânico, ao longo das ações que tomam na história... É necessário que o público tenha uma sensação de que tudo pode acontecer, mas não porque o roteirista decide tomar alguma medida ex machina, e, sim, porque, na vida real, é assim que as coisas são. Há surpresas, perdas, ganhos, decepções. Eu queria que "Arena" tivesse essa mesma qualidade, essa sensação "real". Ou seja, não é pelo fato de Rômulo Cruz ser o protagonista, que está tudo certo para ele. Protagonizar a narrativa não significa necessariamente vencer o evento, não significa ficar com a garota, não significa estar isento de problemas e incorrer em erros graves, como o problema com o alcoolismo. Todas essas questões foram cuidadosamente pesadas.

Como você avalia o cenário das HQs no Brasil?

É um momento de amadurecimento. A arte é democrática; altamente democrática, e é isso que vemos no país atualmente. Muita gente está produzindo num mercado que volta a se aquecer após o período da pandemia. Ao mesmo tempo, isso não deve significar que qualquer coisa, vazia de consistência, forma e significado, deva ser considerada arte. Para mim, o artista precisa de comprometimento, precisa doar seu âmago ao produzir, mesmo que sofra para tanto. Sua missão é dar ao mundo aquilo que tem dentro de si. Por conta da reverberação da cultura pop, estamos num momento em que é cool produzir ou trabalhar com quadrinhos, o que leva muita gente a querer fazê-lo apenas para postar isso em suas redes sociais. Mas creio que isso faça parte de um processo, por isso, reitero que é um momento de amadurecimento. Dito isso, vemos uma pluralidade hoje em dia que jamais existiu; pluralidade não só em termos de criadores, como nas temáticas abordadas. Isso é incrível! Quando penso no que sonhavam os pioneiros da disseminação do quadrinho no Brasil, como Adolfo Aizen e Álvaro de Moya, tenho a sensação de que eles vislumbravam um cenário como o que estamos vivendo. Há eventos pipocando por todo o país, prêmios sendo oferecidos, oficinas ministradas em organizações de respeito, como o "Sistema S", isso sem contar a quantidade de teses de conclusão de curso, mestrado e doutorado que solapam nossas universidades públicas e privadas. Se esse nível de desenvolvimento persistir, é possível que, num futuro próximo, nosso mercado alcance a maturidade de outros, como o francês, o italiano, o americano e, não custa sonhar, o japonês.

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