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'Traviarcado é onde os corpos são acolhidos'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Cada vez que encena "Manifesto Transpofágico", montado em palcos da Itália, França, Espanha, Irlanda e Holanda, depois de uma arrancada inicial em São Paulo, em 2019, Renata Carvalho se torna um ímã vivo de aplausos. Arrebata plateias noite após noite com sua inteligência cênica vitaminada pela contundência de reflexões (com experiências em primeira pessoa) sobre a transcestralidade.

Na telona, há o mesmo magnetismo. Basta ver o que se passou com "Os Primeiros Soldados", hoje na plataforma ClaroTV . Quilos de prêmios foram conquistados pelo longa de Rodrigo de Oliveira desde sua estreia mundial, no Festival de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, em 2021. Parte significativa de suas vitórias se remete ao desempenho devastador de Renata, no papel da transexual Rose.

Teve até láurea especial do júri da Première Brasil pra ela. Sua luta no Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART) e no Manifesto Representatividade Trans ampliou sua força na mídia e seu prestígio. Ela é um corpo político cujas potências geram poética: a poesia da resistência.

Nesta segunda, ela traz ao Rio eu "Manifesto Transpofágico", para uma temporada no Teatro Firjan Sesi, sob a direção de Luiz Fernando Marques (Lubi). O texto é dela, que tem novas ambições pra sua trajetória como autora e diretora, como expõe na conversa a seguir, com o Correio da Manhã.

Qual é a lógica possível e potente do "traviarcado", termo que você sempre menciona em suas postagens, e como essa ideia se materializa na peça?

Renata Carvalho: Traviarcado é o que vem depois do patriarcado. Traviarcado: onde todes os corpos são acolhidos e humanos. Traviarcado também é reverenciar o passado - nossa transcestralidade - nossa história e memória. O espetáculo narra essa historicidade de transcestralidade. Traviarcado é o poder coletivo, é o entendimento de que, sem luta, nada muda, e de que todes nós juntes somos muito mais fortes. É um recrutamento para o Traviarcado.

Pra onde o 'Manifesto Transpofágico' (em cartaz no Sesi até 30 de maio, às segundas e terças, às 19h) já te levou, o que ele te ensinou sobre o Brasil e o que ele ainda tem a proporcionar de descoberta pra você, de cena e de vida?

"Manifesto Transpofágico" já se apresentou por países como Itália, França, Holanda, Irlanda, Espanha, Uruguai e Chile. Em agosto, estaremos na Suíça. Percebi nessas apresentações que o Brasil e a América do Sul estão muito mais avançados no debate das questões LGBTQIAP e de negritude. A pesquisa que desenvolvo sobre os corpos trans é testada em cena, colocada em prática. É um experimento cênico para mim e para o público, se ele se permitir. O 'Manifesto Transpofágico' tem me mostrado o poder de transformação que a arte pode alcançar, trazendo um alargamento sobre temas pouco debatidos - ou temas evitados - no dia a dia. A arte pode deixar o tema mais digestivo, causando a reflexão. O espetáculo propõe também um convite ao diálogo ético, com responsabilidade e respeito.

O filmaço do Rodrigo de Oliveira fez o Brasil se render ao seu talento. Que caminhos o cinema vem abrindo pra você? Como o cinema vem tratando, na ficção, a identidade trans?

Rodrigo me presenteou com a Rose de "Os Primeiros Soldados", uma personagem com verticalidade, curva dramática e tempo de tela. Antes veio "Vento Seco", de Daniel Nolasco. Foi a primeira vez que fiz um longa. A personagem Paula foi outro presente. Venho caminhando aos poucos no audiovisual. Já fiz algumas séries: "Toda Forma de Amor" e "Nós", pelo Canal Brasil, "Impuros" (3ª e 4ª temporadas) e a 1ª e 2ª temporada de "Pico da Neblina", da HBO, com a personagem Carmen. A arte contribui muito para a construção social, patológica, sexualizada, criminal, carnavalesca, moral e religiosa que permeia o imagético do senso comum do que é ser uma travesti. Então, nós artistas precisamos ser responsáveis também pela desconstrução e reconstrução desse imaginário. A arte começou a repensar suas narrativas viciadas e estereotipadas, mas ainda precisamos aprofundar muito sobre o tema, principalmente com especialistas e pesquisadores de fato do tema. Mas, começamos. Como diz Riobaldo, em "Grande Sertão Veredas": "Há um ponto de marca que dele não se pode mais voltar para trás"

Que novos caminhos você tem pela frente nas telas e nos palcos este ano?

Estarei na terceira temporada de "As Five" e na série "Fim". No cinema, gravei, em janeiro deste ano, o longa de André Antônio, "Salomé". Tem o curta inédito "Dinho", de Leo Tabosa. Está em fase de produção o longa onde assino o roteiro e divido a direção com Cibele Appes, diretora do curta "Se Trans For Mar". Tenho uma viagem para Estocolmo, na Suécia, para participar do 9º Congresso de Arte e Cultura, para falar sobre minha pesquisa. O 'Manifesto', além do Rio, tem agenda para: Porto Alegre, Araraquara, São Carlos e Suíça. Em junho, finalizo um trabalho de dramaturgia e direção com alunos da Universidade de Lille, na França. Este ano, quero me dedicar mais à escrita, querendo voltar a dirigir também.

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