'Eu sou a negra do teatro'

ENTREVISTA / SIRLÉA ALEIXO, ATRIZ

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Sirléa Aleixo tem uma atuação arrebatadora em 'Furacão' ao interpretar um idosa americana de 100 anos, mais que o dobro de sua idade

Por Cláudia Chaves

Especial para o Correio da Manhã

Aadaptação do romance "Furacão", do premiado autor e dramaturgo francês Laurent Gaudé, pelo grupo Amok Teatro trata as desigualdades que mesmo um fenômeno da natureza é capaz de apontar, causa um impacto na plateia. Esse impacto tem nome e sobrenome: a atriz Sirléa Aleixo.

Seu desempenho de uma negra americana de quase 100 anos, com um andar lento evidente das sofrências de sua vida, sua voz, sua interpretação, suas dores físicas e da alma nos mostram a presença de uma entidade.

Com exclusividade ao Correio da Manhã, Sirléa discorre sobre sua carreira e relação com o teatro.

Como você encontrou o teatro?

Sirléa Alexo: Eu sou moradora do Jacarezinho há 48 anos, desde que nasci. Minha filha mais velha, Thelissiane, e tinha que fazer uma inscrição no Instituto Nacional do Teatro, ela tinha 15 anos na época, e eu tinha que ir para ela ser de menor. E chegando lá, as pessoas diziam 'ué, não, você não é? Nossa, mas você é tão solta, tem uma energia tão boa, uma luz. Se parece pessoa de teatro. Na hora, pensei, se fizer inscrição, e vou conseguir ver a minha filha fazer o teste. Pensando nisso, eu me inscrevi e entrei para poder ver minha filha. Ricardo Andrade Vassilevich, o diretor do Instituto do Nossa Senhora do Teatro, perguntou o que é o teatro para mim. Respondi: 'vim trazer a minha filha e disseram que eu tenho uma luz, que eu tenho algo especial e que eu sirvo para o teatro, eu acabei fazendo inscrição. Eu nunca fui de teatro. Disseram que eu sou uma pedra preciosa para o teatro, se eu realmente sou isso, então que vocês me lapidem e que me transformem numa estrela'. Foi engraçado, todos riram, eu também ri. Aí começou a minha jornada. A minha história interessante com o teatro é que eu não me identificava como negra. Eu costumo dizer que eu só era uma negra no mundo e que hoje eu sou a negra no mundo.

Como foi o processo de transformar um mulher jovem de 48 anos em uma pessoa de quase cem anos, com todas as características físicas?

Dentro desse processo reverbera muito os exercícios feitos na oficina do Amok Teatro, que é sobre esse corpo vivo, sabe, sobre essa coisa ritual, e também sobre uma busca de como envelhecer. Eu acho que esse corpo traz não somente formas, formas feitas de gestos de pessoas idosas, mas ele traz uma história também. Então, foi um processo. Trabalhoso, nada difícil, é trabalhoso. Trabalhoso para quê? Não para fazer um gesto, porque fazer um gesto é fácil, mas para chegar na organicidade, na verdade, daquele gesto, sabe? E a Ana (Teixeira) e o Stefani (Brodt) fazem um trabalho bem primoroso. São bem delicados nesse aspecto e bem exigentes também. Quando eles falam não, não está verdadeiro, então não bastam gestos, entendeu? Não é somente um gesto. Eles também falam que não é sobre eu fazer o gesto, mas o que esses gestos são. O que esse gesto faz comigo, o que faz de mim, sabe, o que eu quero comunicar com esse gesto. É sobre isso. E é isso. E o resultado é bem gostoso quando dá tudo certo.

A obra "Furacão" trata de como o racismo é também ambiental. Como você se situa nesse contexto?

Em relação ao racismo ambiental, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, é a tristeza das pessoas segregadas que são afetadas diretamente pela falta de políticas públicas para resolver esses fenômenos da natureza que fogem do nosso alcance. É o descaso. Mas de onde vem essa raiz. Eu moro aqui na Jacarezinho, há 48 anos, desde que nasci, cresci vivendo isso. Eu vivo isso a cada ano, a cada dia, o descaso, a falta de pautas de políticas públicas aqui para dentro da nossa comunidade, coisas que a gente sabe que vai acontecer e que ninguém faz nada, porque a gente está jogada a ermo. A gente está no descaso. Não precisa ser o rico, mas qualquer classe mais favorecida do que o pobre daqui da comunidade. Na favela da Zona Sul a realidade é um pouco melhor do que da favela daqui, da Zona Norte. Então eu vivo isso a cada dia. E não posso dizer um evento que me indignou. Eu posso te dizer que vou me indignar todos os anos com o descaso do governo, com o descaso do país, com o descaso de quem for da política contra a nossa comunidade.

E viver com teatro?

Eu não vivo sem um teatro, sabe? E mostrar essa dureza em "Furacão" é mostrar que meu povo na Zona Norte que vive a cada dia a realidade dessa história contada. A cada dia enfrenta um furacão que devasta de alguma forma nossos corpos e mentes. Nem sempre com nomes de mulheres, mas com nomes de pessoas pretas. Então, espero levar para eles força, esperança de um mundo melhor, de um mundo diferente. E para aqueles que estão cansados, para aqueles que só caminham sem sentido nenhum, espero que traga sentido também de vida, sabe? Razão para estar de pé.