Se abril for mesmo a data da estreia carioca do espetáculo "Traidor", que foi a experiência cênica mais avassaladora de 2023 nos palcos (via São Paulo), a vinda ao Rio de Janeiro desse ensaio sobre a mentira - com Marco Nanini em estado de graça - vai funcionar como um esquenta para os 70 anos de seu encenador. Gerald Thomas vai estar de aniversário, um daqueles que marcam época.
No dia 1° de julho, o multiartista que desafiou todos os tabus da encenação no teatro brasileiro completa sete décadas de inquietação. Chega lá fiel a um aforisma que deixaria Nietzsche (um dos deuses pagãos para os quais bate cabeça) orgulhoso: "Cada peça é uma forma de a gente conquistar um espírito de tranquilidade que se perdeu. Mas não me pergunta se estou feliz. Em alguma hora da minha vida fui feliz?".
Reserva viva de potência
GT fez ilustração em Nova York; foi "O" cronista do "Jornal do Brasil" de 2001 a 2003; ensaiou a gestação de um filme com egressos do Dogma 95 da Escandinávia; lançou livro ("Arranhando a Superfície"). Enfim... foi aos polos mais eletrificados da criação e segue a gerar controvérsia (e renovar sua genialidade). Num país que ficou órfão de Zé Celso e de Aderbal Freire-Filho ao longo deste ano, ele é a reserva viva de potência (sobretudo) no terreno dos encenadores que ultrapassaram a cortina da ditadura e vicejaram a partir da década Ploc (os anos 1980).
Peças de Gerald dispensam sinopses. "Eletra Com Creta" (1986), "Carmem Com Filtro" (1989), "O Império das Meias Verdades" (1993), (a seminal) "Esperando Beckett" (2001) e "Bate Man" (2008) galopavam léguas além da dita jornada do herói. Davam nó nas convenções miméticas - no Brasil e no exterior - por seu coeficiente de semiologia, de fragmentação de signos. Sob o "sacode" global da pandemia, ele elaborou "F.E.T.O. - Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada", lançado em 2022, em terras paulistanas, esgueirando-se pela dramaturgia de Nelson Rodrigues. Foi quase uma "peça de regresso", depois de um hiato sem um vendaval geraldiano em nossas salas.
Ali, ficou demarcado para a geração de espectadores dos anos 2020 que os conceitos de "trama" e de "enredo" são sopros de tecnicidade que se perdem no furacão desse diretor capaz de mesclar Marcel Duchamp e Iberê Camargo numa espécie de neotropicalismo de gelo seco e filó.
Essa estética avessa a tecnicismos, que parece trazer fog à moda londrina ao Brasil de Cacá Diegues (um de seus ídolos), renovou-se em "Traidor", encenada em SP, no Sesc Vila Mariana. O que Gerald (em ebulição) arranca de Nanini é uma espécie de palíndromo de si mesmo. É uma persona que, de trás pra frente, de frente pra trás, opera como um espelho distorcido das convicções que outrora teve. Fala em "primavera", mas esse sujeito cênico se encontra no outono de suas próprias crenças, um outono crepuscular.
Hilariante, "Traidor" assume como personagem um ator chamado Nanini que, um dia, em 2005, fez uma peça seminal chamada "O Circo de Rins e Fígados". Essa peça existiu e talvez seja um dos últimos monumentos da nossa dramaturgia. É uma peça sobre a busca a um homem chamado João Paradeiro. Imergir nessa micareta antropofágica da memória de Gerald é como voltar ao passado de um Brasil anterior ao Golpe de 2016, anterior ao governo Bolsonaro. É uma volta no tempo redentora, mas doída.
Numa cenografia distópica de Fernando Passetti, reativa a uma concepção visual do próprio Gerald (similar ao quadro "O Grito", de Munch), "Traidor" se qualificou em São Paulo como sendo o espetáculo mais nutritivo da atual temporada dos palcos nacionais. É vitaminado a ironia (e a Nanini). O fio condutor dos diálogos e das rubricas é uma discussão sobre o sentido de "traição" nos tempos de fake News, nos tempos de delações premiadas. São tempos em que todo o saber depende de tutoriais de YouTube. São tempos de "chucrute no bumbum" (como se diz na peça), ou seja, de alívios passageiros, sem êxtase, sem a epifania da transcendência. Não por acaso, numa Tebas de Édipos sem olhos, de Jocastas sem filhos, o texto gargarejado por um ator sem papéis, na plena consciência de si, evoca a KGB, a Guerra Fria. Evoca perigos reais e imediatos que, um dia, foram concretos, presenciais.
'Sofro de Brasil'
Gerald Thomas fala do comércio eletrônico via Amazon e inventa(-lhe) corruptelas geográficas, como a Pernambook e a Maranhon. São especulações catastrofistas. Num determinado momento, Nani admite: "Sou viciado em drogas. Sou viciado em chorar. Sou viciado em perder". Crava na sequência: "Sofro de Brasil". Essa talvez seja a frase mais dilacerante do teatro feito nesta pátria em era de mudança. A peça é a certeza de que Gerald chega ao 70 na condição de titã. Se não existisse, um Pirandello teria que inventá-lo, à procura de um autor gigante. Mas, nesta nação de Plínio Marcos, sorte a nossa termos um diretor que se devora e se regurgita.