Um manifesto revisitado
Show teatral documental traça um paralelo entre o Brasil opressivo dos anos 1970 e a atualidade, mostrando o que não mudou nos últimos 50 anos
Em 1974, Maria Bethânia fez um show antológico chamado "A Cena Muda". Este espetáculo trazia na superfície temas sobre ser artista, mas implicitamente tratava de temas que rondavam o Brasil nos anos 1970, como a falta de liberdade de expressão, o vazio humano, a censura, a desvalorização da mulher, os exageros nos interrogatórios e prisões, e sobre estarmos mudos. Com músicas de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, o show foi um marco na história da música e do teatro brasileiro. Inspirado por essa inquietude, o show teatral documental "A Cena (Não) Muda", que estreia nesta quarta-feira (14) no Teatro Dulcina, traça um paralelo entre aquele período opressivo e o que não mudou em 50 anos de Brasil.
Fatos históricos, as truculências e as violências em geral praticadas contra a população, desaparecimentos e outros crimes que se perpetuaram através do tempo são confrontados no palco através de narrativas reais e documentadas pela história. Se, em 1974, a artista no palco não podia falar e cantava a sua dor, hoje cantaremos e falaremos em cena as marcas do que ficou. Afinal, os crimes impunes do período militar inspiram e alimentam os que hoje são cometidos.
"Através do espetáculo, é possível ver que a impunidade dos crimes cometidos nos anos 1960/1970 normaliza e nutre a certeza da impunidade para certas parcelas do governo. Se não foram punidos antes, por que serão punidos agora? O espetáculo faz pensar sobre de onde viemos, onde estamos e para onde estamos caminhando", descreve o autor Pedro Henrique Lopes. "Num cenário de extrema rispidez e intolerância, onde os extremos estão cada vez mais polarizados, a gente expõe em cena situações do ontem e de hoje que mostram a urgência de pararmos com o extermínio da população pobre e mudarmos as políticas públicas e de segurança que normalizam um corpo periférico caído no chão. Isso não pode ser normal!", acrescenta o diretor Diego Morais.
Em cena, as atrizes Valéria Barcellos, Sara Chaves e Hiane dão voz a histórias de 1974 como a de Ieda Santos Delgado, uma das únicas mulheres negras desaparecidas durante a ditadura militar, e a busca de Eunice, sua mãe, tentando incessantemente encontrar sua filha. Além de acontecimentos recentes, como as vidas de Luana Barbosa dos Reis Santos, Cláudia Silva Ferreira, Ágatha Félix e Kathlen Romeu, mostrando o que não mudou de ontem para hoje.
"Apesar de inserido num contexto de questionamento das heranças e de status político-sociais, o espetáculo é uma abordagem humana sobre os sentimentos de personagens que viveram ou vivem os impactos dessas escolhas, fatalidades ou coincidências do sistema. É um olhar sensível a mulheres, e sobretudo mães, que seguem firmes na busca por respostas, que são fortemente afetadas pelos fatos, mas não sucumbem. Nossas personagens são mulheres que se impõem como fortalezas quando expostas ao que é dolorido e cruel", explica o diretor Diego Morais.
"A Cena (Não) Muda" revisita as músicas e os temas do show de Bethânia e a história de tantas mães que buscam por seus filhos e filhas, num emocionante retrato de gritos mudos, de silêncios estridentes e de cenas que se repetem e não mudam até os dias de hoje. Com o direito conquistado de falar, de questionar e de pensar, o elenco se desdobra para remontar e cantar essas dores e os temas que, em 50 anos, ainda se repetem. O repertório inspirado no show de 74, somado a músicas de artistas atuais, reportagens, documentos e textos trazidos ao palco, denuncia os reflexos dessa herança social.
"O espetáculo propõe pensarmos junto com cada espectador os caminhos que a nossa sociedade tem tomado em aspectos sociais, de cidadania, de direitos humanos, de forma de pensar, de minorias, de maiorias, de violência, de desigualdades e, sobretudo, de respeito ao próximo", convida Pedro Henrique Lopes. "Se há 50 anos atrás a cena era muda, em 2024 nós iremos falar", avisa.
SERVIÇO
A CENA (NÃO) MUDA
Teatro Dulcina (Rua Alcindo Guanabara, 17 - Centro)
De 14 a 29/8, quartas e quintas (19h)
Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)