Fluxos conscientes e inconscientes no palco
Renata Sorrah revê carreira entre Tchékhov e Nazaré Tedesco em peça sobre os meandros da mente da artista
Rio de Janeiro. 1974. Renata Sorrah está no carro dirigindo para um ensaio da peça "A Gaivota" quando é surpreendida por uma epifania. "A minha cabeça abre e eu entendo todas as coisas." As ciências, o universo, o sentido da vida. Para ela, tudo se torna simples e claro. "Mas, de repente, a minha cabeça fecha de novo e tudo vai embora."
Essa experiência metafísica é o fio condutor da peça "Ao Vivo: Na Cabeça de Alguém", que a atriz estreia nesta semana no Teatro do Sesi, em São Paulo. Com direção de Marcio Abreu, o espetáculo usa o episódio para explorar o que se passa na mente de uma artista.
A exemplo dos pensamentos, a narrativa não obedece a um encadeamento lógico ou linear. É como se o público estivesse diante de uma consciência em convulsão.
Num ritmo frenético, os personagens enunciam anseios, memórias e inseguranças. O texto faz referência não só a fatos subjetivos, mas também a acontecimentos sociais.
A produção cita, por exemplo, o ex-presidente Jair Bolsonaro, político que criticava com frequência a classe artística. "Fomos atacados. Somos sobreviventes e isso está no cerne da peça. Era como se a gente tivesse quase se afogado, mas agora voltamos a respirar", diz Sorrah, referindo-se ao governo do presidente Lula.
Esse estofo político, afirma o diretor, mostra como as memórias íntimas e coletivas se misturam. "São descrições que podem ter uma relação subjetiva e íntima com cada pessoa, mas são imagens extremamente coletivas", diz Abreu. "É a história da gente e ela está entranhada na nossa memória."
O dramaturgo também construiu o texto pensando em cada um dos cinco atores que compõem o elenco. Além de Sorrah, estão em cena Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar, Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo.
"Não é uma autoficção, mas a voz das pessoas que criaram a peça está presente", diz ele. "A linguagem que usei para fazer determinado tipo de vibração aparecer tem muito a ver com cada uma dessas pessoas."
A voz de Sorrah, por exemplo, está presente por meio de referências à peça "A Gaivota", obra basilar do dramaturgo russo Anton Tchékhov. A atriz deu vida à Nina na primeira montagem brasileira da peça, dirigida por Jorge Lavelli.
Ela diz que a epifania que teve ao ir para o ensaio da peça aconteceu por influência do texto. "É a mesma coisa que acontece quando você vê um quadro ou lê um livro que te faz mudar de profissão", diz a artista, acrescentando que sentiu isso ao ver "O Rei da Vela", peça dirigida por Zé Celso, em 1967. "Não tive dúvidas. Era aquilo que eu queria fazer."