Luis Felipe Reis: 'Precisamos cultivar vida nos desertos e ruínas do mundo em que vivemos'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Depois de esboçar uma promissora carreira rondando a música no Caderno B do "Jornal do Brasil", Luiz Felipe Reis foi para O Globo arriscar a cobertura da produção teatral. No dia a dia de entrevistas, deixou-se contaminar pelo desejo de ir além da reportagem e partir para o palco, como criador. Uma centelha de invenção o levou à dramaturgia e também à encenação, driblando rotas mais óbvias (a trilha dos espetáculos comerciais). Preferiu apostar na pesquisa, a de gestos, a de palavras, a de geografias simbólicas. Depois de "A Inútil Biografia De Um Homem Qualquer" (2014) e "Estamos Indo Embora..." (2015), ambas coroadas com o carinho da crítica, parte para um trabalho de risco (e de maturidade) calcado nos escritos e nas vivências do romancista, poeta e contista chileno Roberto Bolaño (1953-2003): a peça "Deserto".

O espetáculo fez barulho no Futuros, no Flamengo, em maio e junho, e retorna à ribalta, agora no Teatro Firjan Sesi Centro, onde fica até 6 de outubro, apostando na força catártica do ator Renato Livera. Ele e Luiz Felipe armam um jogo da amarelinha a partir do pensamento do autor de "2666" e "O Gaúcho Insofrível".

Na entrevista a seguir, o outrora repórter expõe os dispositivos teóricos de sua imersão em Bolaño e as cicatrizes latinas de sua prosa.

Qual é o contexto histórico latino-americano que pesa como vetor de sentido na escrita de Roberto Bolaño?

Luiz Felipe Reis: Bolaño viveu e cresceu sob os efeitos diretos e indiretos das doutrinas e operações político-financeiras colonizadoras norte-americanas. Falo da Doutrina Monroe — "América para os (norte-)americanos", em vigor até hoje — e da operação Condor durante os anos da Guerra Fria, que violentaram e ainda violentam e violam a soberania de todos nós latino-americanos. Na sua juventude, viveu intensamente o sonho da emancipação da esquerda. Também viu e viveu na pele a desilusão, o pesadelo, o avesso do sonho, e conviveu com as reverberações e ecos perturbadores das ditaduras até o fim. Diante de todo o arsenal colonizador — militar, financeiro, político, cultural — mobilizado pelos EUA sobre as Américas, Bolaño reage a seu modo. Ele vive, a partir da queda-morte de Allende, em 1973, o fim do sonho político e o início do sonho poético. Compreende, em meio às ditaduras latino-americanas, que sua "arma" é a poesia, a escrita. Passa a enxergar a poesia como arte e como forma de vida, como uma aventura existencial, como forma de oposição política e subjetiva, renúncia e resistência ao mundo das armas e do capital.

Qual é o saldo desse processo?

Daí irrompe a consciência do poeta enquanto figura insurgente, que resiste e enfrenta continuamente a lógica colonizadora e exploratória ilimitada do capital. Bolaño amadurece, torna-se adulto, ao passo que o capitalismo dobra sua aposta rumo ao neoliberalismo e à globalização. É nesse contexto, pós Guerra Fria, já como um imigrante latino-americano na Espanha, com um planeta globalmente colonizado pelo regime totalitário do capital, que ele começa e publicar seus primeiros livros — começo dos anos 1990 — e percebe que sob o império numérico-quantitativo do lucro acima de tudo haverá cada vez menos tempo e espaço para poesia e para uma existência poética que, como sabemos, escapa à lógica da quantificação, da mensuração e da acumulação infinita de lucro e poder. É como se Bolaño percebesse que, no capitalismo avançado, neoliberal, os poetas, os artistas, estão sendo arrastados novamente para aquela famosa cena de "A República", de Platão, no capítulo X. Aquela em que se narra a expulsão dos poetas da cidade, num elogio sinistro à tal medida, que estabelece que os poetas não deveriam ser mais aceitos em meio aos "cidadãos de bem". Isso se dá porque eles, os poetas, assim como suas produções de linguagem, resistem ao confinamento da lógica segundo a qual o acesso à verdade se dá exclusivamente via mensuração. É em resposta a tal percepção, de um mundo cada vez mais submetido e regulado pela lógica numérica e quantitativa, intensificada pelo capitalismo neoliberal, que Bolaño passará a escrever sobre o desaparecimento de poetas e escritores do mundo.

Como se deu o processo de pesquisa e criação de uma persona Bolaño - de um modo de estar Bolaño - com o ator Renato Livera?

Eu sentia que precisava de um ator que trouxesse, em termos de energia e de materialidade, uma mistura de Roberto Bolaño e de Mário Santiago, ou de Arturo Belano e Ulisses Lima, os heróis do livro "Os Detetives Selvagens", e que também acrescentasse a essa mistura sua personalidade, sua subjetividade. Foi aí que lembrei do Renato Livera, que não foi pensado apenas porque é um excelente ator — o que ele é, evidentemente —, mas sobretudo porque eu sentia e confiava em sua capacidade de instaurar uma certa energia, uma qualidade de presença que eu sentia que o trabalho requeria. E aí veio o trabalho com ele, que trouxe muito para a peça. Mas desde o começo, a primeira coisa que falamos foi que não interessava ao projeto a busca por uma mímese representativa, a tentativa de representar o Bolaño em cena, imitar seu modo de falar, agir etc. Não era o que interessava.

Que legado Bolaño deixa para a literatura?

Uma inconformação com as ordens e normas do poder, a não aceitação de um mundo que atua para promover a desistência ou a des-existência dos poetas e da poesia. Em vez de des-existir, insistir e re-existir, mesmo no deserto. É por tudo isso que a obra do Bolaño é um dispositivo que nos ajuda a refletir coletivamente sobre a condição de ser poeta, artista e escritor nesse mundo em vias de se tornar um deserto. Trata-se de uma reflexão crítica, um chamado.