Por: Cláudia Chaves | Especial para o Correio da Manhã

Gente saída de um esgoto moral

A Comparsaria Teatral adaptou sete crônicas de João Ximenes Braga para o palco em 'Gente de Bem' | Foto: Lia Ximenez/Divulgação

Gente de bem foi uma expressão que definia uma sociedade brasileira que jamais existiu. Uma gente branca, com foros de realeza/nobreza que não possui e jamais possuirá. Gente com valores mais do que conservadores e com total desprezo por qualquer outra diversidade. Com ódio mortal, literalmente, é capaz de eliminar fisicamente aquele que atravessar seu percurso. Nada mais retrógrado e patético.

O livro "Necrochorume e outros contos" de João Ximenes Braga, um dos mais importantes escritores da televisão brasileira (vencedor do Prêmio Emmy Internacional de Melhor novela de 2013), ganha versão para o teatro na peça "Gente de Bem", montagem da Cia. Comparsaria Teatral que traz, pela primeira vez, um texto do autor para o teatro.

São sete histórias curtas retiradas literalmente da publicação de 2021 que retrata personagens e situações típicas da classe média branca brasileira. O resultado mostra crônicas de nossa época, escritas a quente, como apontamentos sobre absurdos registrados pelo autor no dia a dia, seja observando situações, diálogos, atitudes, o preconceito, os atavismos, o racismo, a homofobia e o conservadorismo das pessoas. Continua na página seguinte

 

'Fiquei suspreso com a teatralidade e o humor nessa prosa'

A montagem que volta à cidade recebeu ótimas críticas | Foto: Lia Ximenes/Divulgação

A montagem, que reestreia no Teatro Glauce Rocha, com curta temporada até dia 24, recebeu ótimas críticas publicadas em jornais e blogs culturais cariocas durante a sua primeira temporada, realizada no ano passado no Centro Cultural Banco do Brasil - Teatro II.

Além das indicações ao Prêmio Shell de Teatro e Prêmio APTR nas categorias de melhor ator e melhor ator coadjuvante para Xando Graça. O elenco conta ainda com Adriana Maia, Alexandre Damascena, Ana Achcar, Anna Wiltgen, Camí Boher, Dadá Maia, Gilberto Goés, Henrique Manoel Pinho, José Ângelo Bessa, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Pamela Alves e Stefania Corteletti.

"Quando vi um ensaio de 'Gente de bem', recorte de seis dos trinta contos de 'Necrochorume', fiquei surpreso com a teatralidade e o humor que a companhia descobriu nessa prosa. Os dois contos que fecham o espetáculo, porém, me deixaram apavorado. A companhia lhes trouxe tamanha virulência que eu não conseguia deixar de pensar que, em outros tempos, toda a trupe seria presa logo na noite de estreia. Graças a muita luta, não vivemos em outros tempos, mas nestes. Por outro lado, esta peça não nos deixa esquecer que os outros tempos continuam na coxia, esperando sua deixa para entrar em cena. E nos aniquilar", ressalta Ximenes Braga.

"As histórias construídas por Ximenes nos obrigam a olhar a sordidez humana sob o ponto de vista do opressor, e é preciso encarar esse opressor, só assim encontraremos caminhos possíveis para desconstruir a branquitude", observa Adriana Maia. O humor penetra por poros que a razão talvez não alcance. As histórias narradas em Urina, Café, Carne, Uísque, Esgoto, Asco e Soro, nos convidam a refletir sobre nós e nossa sociedade.

A diretora geral aposta numa teatralização construída a partir da performance do ator-narrador - um recurso cênico do teatro épico contemporâneo, que permite ao ator transitar entre o ato de narrar e o jogo da representação, assumindo por vezes a função de personagem-narrador, e outras vezes de narrador-personagem -, que se coloca como um veículo de passagem entre texto e espectador. Ele manuseia a matéria-prima, que são as ideias, as situações e os sentimentos contidos no texto, e dá a ela uma forma "incompleta", como se fosse uma escultura inacabada, que contém nela a proposta de várias formas diferentes e então entrega a escultura 'inacabada' ao público para que ele possa, a partir de sua percepção pessoal, concluir a obra.

Adriana Maia, a diretora da peça, é uma mestra das artes performáticas. Professora da CAL (Centro de Artes Laranjeiras, prestigioso centro de formação cênica). Atriz, diretora de teatro há mais de 30 anos, além de Doutora em Teatro pela UNI/RIO, foi uma das coordenadoras do programa Horizontes Culturais, um projeto de formação de plateias e valorização da cultura artística nas escolas, direcionado a professores e alunos da rede pública municipal do Rio de Janeiro

Adriana se exprime de forma gregária, desenvolve um trabalho sempre eficiente, inovando construindo, descontruindo e sem qualquer temor de demolir aquilo que não é capaz de produzir o bom teatro. Foi integrante do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo de Aderbal Freire Filho, do Núcleo de Teatro a Céu Aberto de Marcos Vogel e da Cia do Paraíso de Gillray Coutinho. Foi uma das componentes do grupo teatral Além da Lua que, em 1985, recebeu o Prêmio Molière de Incentivo ao Teatro Infantil. Em 2004, funda o grupo Teatro das Possibilidades e desde então atua e dirige nos espetáculos produzidos pelo grupo. Com o grupo Os Trágicos criou os espetáculos "Hamlet ou Morte" e "Faz de Conta Que é Tempestade", que realizaram temporadas ao longo de 2015 e 2016 em diversos teatros cariocas.

 

SERVIÇO

GENTE DE BEM

Teatro Glauce Rocha (Avenida Rio Branco, 179 - Centro)

Até 24/11, às sextas e sábados (19h) e domingos (18h)

Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)