Nascida na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), Mercedes Baptista superou obstáculos e quebrou barreiras raciais. "Abriu caminho para futuras gerações de bailarinos negros, como eu. Sua ascensão é um testemunho do poder da arte em transcender fronteiras sociais e raciais", diz Ivanna.
Mercedes foi a responsável pela criação do balé afro-brasileiro, inspirado nos terreiros de candomblé, elaborando uma codificação e vocabulário próprio para essas danças. O Ballet Folclórico Mercedes Baptista consolidou a dança moderna do Brasil. Ao longo de sua trajetória, Mercedes recebeu diversos prêmios e reconhecimentos, solidificando sua posição como uma das principais bailarinas do país.
A produção artística negra, sistematicamente apagada e desvalorizada, quando entendida sob o viés decolonial, evidencia o potencial intelectual e econômico da cultura afro-brasileira. São produções essenciais que possibilitam a manutenção de laços comunitários entre a população negra, assim como ofertaram as bases que estruturaram a identidade nacional. A inserção da dança afro-brasileira, batuque, canto preto e filosofia africana como eixo central da pesquisa, contribui ao fazer a ponte entre o que existiu com a atualidade.
Para Luiz Antonio Rocha, é impressionante como o apagamento de tantos artistas negros, como Mercedes e contemporâneos seus, sofrem até hoje. "Mercedes merece ter sua história contada e recontada de todas as maneiras possíveis, pois ela foi pioneira, que enfrentou toda e qualquer adversidade e para ser a figura que se tornou".
O espetáculo parte do encontro entre Mercedes e Ivanna, com meio século de intervalo entre elas, duas artistas pretas da dança que nasceram na mesma Campos, uma das últimas cidades do Brasil a acatar a abolição da escravidão.
"Diante dos obstáculos, cada vez mais duros enfrentados em sua caminhada de artista negra, Ivanna encontra em Mercedes uma fonte de resiliência e encantamento, uma chave para destravar as portas do seu futuro", acrescenta Luiz.
O diretor reforça que, para ele, é difícil fazer um recorte da vida de uma mulher como Mercedes e trazer à cena o protagonismo de uma mulher preta de sucesso dos anos 60, quebra não apenas um paradigma do racismo estrutural de um país, mas também traz uma história decolonial de ancestralidade.
"Essa história dialoga e faz pensar sobre o massacre cometido pelos colonizadores da América latina e do atraso histórico da realidade da sociedade da América Latina. Estamos reescrevendo a história do Brasil. A trajetória de Mercedes Baptista é absolutamente necessária para ser contada, não pode ser apagada como tentaram apagar a história do povo preto dos livros de história", reforça o diretor artístico.
"Para além da primeira bailarina do Theatro Municipal, Mercedes também foi uma mulher aguerrida que manteve sempre a cabeça erguida em um propósito: mostrar que ela merecia chegar onde chegou e ainda ousar em quebrar paradigmas e mostrar a cultura da nossa gente, a cultura afro, sobretudo por interferir de maneira positiva na percepção de novos significados para o contexto da dança, com a diversidade, inclusão e memória, tão presentes na sua trajetória", afirma Ivanna.
Ivanna ainda conta que, durante o processo de preparação, ficou surpresa com a força de Mercedes em empreender, em não esmorecer, ao brigar pelo espaço dela. A bailarina cuidou da criação, da venda do seu produto, sua arte, ela sabia o que acontecia em cada detalhe da cadeia de criação dos projetos dela.
"Ela mesma arrecadava e pagava cada integrante, cada cachê, ela valorizava o profissional da arte, visionária e corajosa. Para cada porta que ela encontrava fechada, criava mais força para desenvolver e executar projetos culturais numa época ainda onde a mulher não tinha voz e nem vez", salienta Ivanna.
"Me sinto muito forte quando encontro outras mãos que me ajudam e dizem que eu devo seguir, persistir, porque eu mesma já pensei em desistir muitas vezes. Mas eu lembro de Mercedes e tantos outros que deram o sangue para que eu pudesse estar aqui", diz Ivanna.
O enredo do espetáculo, construído por meio de extensa pesquisa sobre a trajetória artística e vida pessoal de Mercedes inspira e reforça o compromisso do teatro com a diversidade, inclusão, respeito e consciência da ocupação dos espaços pela comunidade afrodescendente. "Falar de Mercedes é falar do novo com o olhar no futuro. Uma mulher preta que quebrou o tabu do tutu branco e da sapatilha cor de rosa e ganhou o mundo. Sua história se repete e inspira artistas pretas que tiveram suas histórias interligadas não apenas pela dança, mas principalmente pelo racismo, que interviu no caminho de todas elas", finaliza Luiz Antonio Rocha.
SERVIÇO
MÃO NA BARRA, PÉ NO TERREIRO, A VIDA E A DANÇA DE MERCEDES BAPTISTA
Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro (Rua José Higino, 115 - Tijuca)
Até 24/11, sexta e sábado (19h) e domingo (18h) | Entrada franca, com retirada de ingressos no site Rio Cultura