Os deuses apareceram

Montagem de Zé Celso para o clássico de Samuel Beckett é reencenada sob a curadoria de Marcelo Drummond, viúvo do teatrólogo

Por Cláudia Chaves | Especial para o Correio da Manhã

Marcelo Drummond e Alexandre Borges vivem dois mendigos que se encontram entre a paralisia e a tomada da ação e se envolvem em uma variedade de discussões e encontros enquanto esperam Godot

Samuel Beckett, o irlandês que se fixou em Paris em 1937, escrevendo em francês, prêmio Nobel, literato, dramaturgo, diretor, é uma figura emblemática da arte do século Passado. Um dos grandes do chamado Teatro do Absurdo, uma dramaturgia baseada essencialmente no absurdo das situações e na desestruturação da linguagem. Esse anti-teatro é também dos iconoclastas Ionesco, Pirandello, Genet e Adamov.

Beckett foi o primeiro aluno de sua turma no Trinity College, leitor na École Normale Superieure, a mais prestigiada Faculdade em Paris. Amigo de James Joyce, é esfaqueado por um mendigo que, perguntado na prisão sobre o motivo, responde não saber. Nada mais absurdo. Foi da Resistencia Francesa, escreve "Esperando Godot", sua maior obra, em de outubro de 1948 até janeiro de 1949

A estreia, cinco anos depois, acontece no dia 5 de janeiro de 1953, no Théâtre de Babylone em Paris, dirigido por Roger Blin. Há poucos espectadores, que irritados até o dia em que "não está acontecendo nada", entram em conflito. A coisa viraliza e não é preciso mais para que todos queiram ver. O escândalo leva ao triunfo: Godot permanece em exibição por mais de um ano. E o resto é história.

"Esperando Godot" tem forte simbologia para a Companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona - foi o último espetáculo de Cacilda Becker (montado em 1969), força motriz de criação para as muitas gerações de artistas do Teatro Oficina. A montagem foi a última peça dirigida por José Celso Martinez, falecido em julho de 2023.

A peça marca o retorno de Alexandre Borges a um espetáculo da companhia depois de 30 anos. O ator viveu o Rei Cláudio na montagem de "Hamlet", de William Shakespeare, em 1993, espetáculo que reinaugurou o Teatro Oficina, com o atual projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi e Edson Elito.

Estragão (Marcelo Drummond) e Vladimir (Alexandre Borges) são dois mendigos vagabundos que se encontram na encruzilhada entre a paralisia e a tomada da ação, se envolvem em uma variedade de discussões e encontros. Enquanto esperam Godot, embora não saibam quem ou o que é, a dupla se encontra com as personagens que passam pela estrada: Pozzo, o Domador (Ricardo Bittencourt), Felizardo, a Fera (Roderick Himeros) e O Mensageiro (Tony Reis), que traz notícias inquietantes que podem determinar a perpetuação da inércia ou a libertação total da paralisia numa reviravolta absurda.

Essa versão, agora reencenada sob a curadoria de Marcelo Drummond, o marido de José Celso, não é a primeira encenação do diretor para o texto. Houve uma versão há duas décadas, no Rio, que focou nos aspectos de comicidade mordaz, característica do autor irlandês, e outra para o filme de Monique Gardenberg que traz de volta aos eventos no Teatro Oficina quando a cineasta e o diretor teatral retornam à peça teatral de Beckett, 20 anos depois de uma primeira montagem no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.

Na versão de Ze Celso em "Cacilda!", em setembro de 1998, a atriz interage também com personagens de suas peças, a principal delas sendo "Esperando Godot", do irlandês Samuel Beckett. Foi durante um intervalo de uma das apresentações de "Godot" que a atriz sentiu-se mal, sendo levada ao Hospital São Luiz, onde morreu em 14 de junho de 1969, após um coma prolongado.

Quando perguntado pela Folha de São Paulo se Godot é Deus, a resposta de Ze Celso veio na cosmogonia do diretor: "Pode também ser. Um deus que tem conta e sigilo bancário, banco de dados, ou simplesmente não faz nada, ou ainda cuida de cabras e ovelhas... Acho que está mais para "Gott is Tod", o Deus está morto de Nietzsche e todas as consequências oswaldianas: o Messias não vem mesmo, a vida é pura devoração, usufruto, imanência, o fim do Teatro Metafísico."

O encontro de dois deuses do teatro, famosos por sua criatividade, inovação, coragem, Beckett e Ze Celso, aproximam duas vanguardas que explodem na segunda metade do século passado. Ambos são capazes de fazer da mordacidade um domínio para o significado do que apresentam, ao mesmo tempo em se não desviam um milímetro do melhor das artes em cena.

SERVIÇO

ESPERANDO GODOT

Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, s/nº, Centro)

Até 8/12, às quintas e sextas (19h) e sábados e domingos (17h)

Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia)