Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Francis Mayer: 'Personagens marginalizados têm histórias contundentes'

Francis Mayer, dramaturgo, diretor teatral e produtor | Foto: Acervo pessoal

De rasgar corações em sua cartografia da solidão, "Marginal Genet" abriu a temporada carioca de estreias nas artes cênicas, no último dia 2, resgatando o que o Cine Teatro Joia (ali no nº 680 da Av. N. Sra. de Copacabana) tem de mais simbólico: a condição de ser um perímetro de experimentação, com foco em estudos sobre os abismos da alma. Precipícios existenciais (os afetivos sobretudo) têm lugar de honra na dramaturgia de Francis Mayer, que comemora os 40 anos de sua trajetória profissional nos palcos dialogando com a obra de Jean Genet (1910-1986).

Autor de 20 peças, diretor de 33 espetáculos, ele se profissionalizou com a montagem musical de "O Mágico de Oz", no Plataforma I, no Leblon, em 1985, com Ankito e Bia Nunes. "Produzi esse projeto e ainda atuei nele, fazendo o Homem de Lata, mas nunca mais voltei a atuar, pois meu lado produtor me levou adiante, até que passei a dirigir os meus próprios projetos", diz Francis, que flertou com o cinema, em 2014, na devastadora "Pasolini No Deserto Da Alma", com rock de Ozzy Osbourne no recorte biográfico do realizador de "Pocilga" (1969).

Agora, no aniversário de suas quatro décadas de arte, ele mergulha nas páginas de "Diário de um Ladrão" (1949) para recriar o universo genetiano numa alegoria sobre corpos expostos (e violentados) que carregam espíritos indômitos. No papo a seguir, Mayer explica sua poética.

Qual o simbolismo de Jean Genet para a sua geração e qual foi seu primeiro contato com ele?

Francis Mayer: Posso arriscar que Jean Genet hoje representa "ter liberdade individual para ser o que se é", com todos os riscos previstos, sendo o avesso da simples obediência a regras pela virtude da transgressão. Curiosamente, quando resolvi fazer audição para fechar o elenco de "Marginal Genet", percebi que a maioria dos atores que mandaram seus currículos não o conhecia. Então, preparei um material sobre o autor, apresentando-o antes de cada leitura dinâmica, e percebi o encantamento de todos quando souberam da sua história de vida. O meu primeiro contato com Jean Genet foi assistindo (três vezes) "As Criadas", em 1981, no Teatro Maison de France, com Dina Sfat, Suzana Faini e Jacqueline Laurence. Teve ainda o filme "Querelle", dirigido por Rainer Werner Fassbinder, em 1982, com Brad Davis e Jeanne Moreau, cujos direitos autorais adquiri para produção da montagem no teatro, em 1989, no Teatro Dulcina, lançando Gerson Brenner como ator. Tive Rogéria no elenco, como Madame Lysiane, e a música "Quero ele", composta por Cazuza, especialmente para o espetáculo. Devo registrar que considero antológica a montagem de "Nossa Senhora das Flores" assinada por Maurício Abud e Luiz Armando Queiroz, de 1987, no Teatro Cacilda Becker. "Marginal Genet" marca minha terceira incursão no universo desse autor. Antes, produzi o já citado "Querelle" e, em 1997, dirigi "Alta Vigilância", no Teatro Candido Mendes.

Seu espetáculo dialoga com uma tradição de teatro queer que, no Rio de Janeiro, rendeu produtos lendários, de comédia e drama. De que maneira "Marginal Genet" conversa com essa linhagem, ligada a conflitos da afetividade entre personagens homossexuais?

No teatro, não me interesso por textos que tenham a obrigação de levar uma mensagem ao público sugerindo isto ou aquilo. Gosto de personagens conflitantes em situação limite, que resultem em cenas impactantes, que mantenham o interesse da plateia por meio de uma boa história, mesmo que essa não tenha um final feliz. Sempre encontro eco em personagens que vivem à margem da sociedade. Por exemplo, em "Diário de um ladrão", Jean Genet desfila, em sua "ficção" autobiográfica, a convivência com vários personagens. Escolhi, dentre todos, para "Marginal Genet", as relações mais enigmáticas que pudessem ilustrar a vida à margem do protagonista. Invariavelmente, são personagens homossexuais, ladrões, prostitutas... Tenho um carinho pelo submundo. Esses personagens marginalizados têm histórias contundentes para contar. Recebo mensagens de espectadores me agradecendo pelos espetáculos com temas LGBTQIAPN que dirijo, enfatizando que tais montagens contribuem para combater preconceitos ao aliar arte com temas pertinentes.

O que um aparelho como o Cine Teatro Joia representa para a cena teatral do Rio de Janeiro?

Eu gosto de espaços com características underground, e o Cine Teatro Joia me remete a isso: um espaço cult, alternativo. Ele mantém sua programação de cinema também. Em agosto de 2024, estreei "Detentos" lá e fizemos duas temporadas. Volto agora com "Marginal Genet". Tomara que se transforme em um espaço de convivência cultural, reunindo várias tribos.

O espetáculo que fez em 2024 sobre Pier Paolo Pasolini regressa? O que aprendeu na imersão no poeta e diretor italiano?

Já estamos articulando a volta de "Pasolini No Deserto Da Alma" no Rio. Nos planos, também tem uma temporada em São Paulo. Escrevendo sobre Pasolini, diante de uma biografia poderosa, aprendi a ter autonomia, sem trair os fatos reais, para me arriscar em criar situações imaginárias. Essa experiência, definitivamente, me ajudou a chegar no processo de escrita do texto de "Marginal Genet". Fiquei mais corajoso em "existir" como autor diante da chancela do "livremente inspirado na obra...", já que as situações na peça são apenas citadas pelo autor.

Que outros projetos tem para realizar?

Tenho inéditos ainda "O Bicho Da Seda Pura", sobre um estilista que perde o controle da sua marca e tenta voltar ao mercado da moda, e "Dose Dupla de Solidão", sobre a amizade entre a cantora Ella Fitzgerald e a atriz Marilyn Monroe.