Desde que chegou de Paris, onde mora há seis anos, Maria Fernanda Cândido passa horas em seu camarim, no porão do Teatro-D-Jaraguá, em São Paulo. Sentada numa poltrona, a atriz mostra apreço por seus recentes achados literários, descobertos em livrarias da capital francesa. Entre eles, uma antologia bilíngue de poetas russos, que ela folheia, deixando ver os seus grifos. "A beleza é sempre positiva, é uma moeda mundial", diz ela. "Ser bonita abre portas, mas não as mantém abertas. A trajetória de uma vida não será feita por causa da beleza somente."
Aos 50 anos, a atriz não se importa com a pressão estética da sociedade, expressão agora debatida na internet. "Eu não pego isso para mim", diz, enquanto passa rímel, diante do espelho, minutos antes do ensaio fotográfico.
Considerada uma das mulheres mais belas do século, segundo uma enquete feita pelo Fantástico, da Globo, Cândido prefere se atentar à literatura. No fim se semana, estreou a peça "Balada Acima do Abismo", um colagem de textos de Clarice Lispector, autora que marcou a sua adolescência. O projeto se iniciou há quatro anos, na forma de um recital, realizado na Embaixada do Brasil, na França, em homenagem ao centenário da autora. Desde então, cumpriu temporadas em Paris.
"Percebo um movimento de descoberta da obra de Clarice na França, sobretudo entre jovens adultos, que ficam muito curiosos e querem saber de quem são esses textos", afirma a atriz. Por ironia, só agora o espetáculo será apresentado ao público na língua em que Clarice escreveu seus livros.
"Quando muda a língua, tudo muda, e é claro que o português é melhor. Nos textos dela a tradução nunca é exata. Os franceses tentam corrigir as transgressões gramaticais dela, e a gente tem de barrar esse ímpeto, porque isso é a obra da Clarice", diz.
A dramaturgia de Catarina Brandão se concentra nos contos "A Repartição dos Pães", "E Para Lá que Eu Vou" e "Restos de Carnaval", resgatando também entrevistas encontradas na imprensa. "Balada Acima do Abismo" combina as passagens determinantes da biografia de Clarice a uma investigação das obras selecionadas.
O nome do espetáculo tem origem num poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Jornal do Brasil, em 1977, um dia depois da morte da escritora e do dia de seu aniversário. No poema, Drummond ressaltava o misticismo, característica da literatura clariceana que ainda seduz novas gerações de leitores.
Em especial, "Balada Acima do Abismo" replica uma ideia de indeterminação, que perpassa todo o projeto literário de Clarice, em diferentes instâncias. De início, a obra da escritora é marcada por um hibridismo de gêneros. Alguns contos, por exemplo, podem ser entendidos como crônicas - e vice-versa.
Ao resumir "Água Viva", lançado no ano de 1973, como uma ficção, Clarice mais expunha seu gosto pela dúvida do que resolvia o impasse. Não é romance, conto e muito menos ensaio. Por isso, a água, imagem recorrente em sua obra, plasma em que se dispersa o universo da autora. De modo análogo, não é possível identificar, na costura dos textos de "Balada Acima do Abismo", onde começam e terminam os contos.
Sobretudo, não se sabe quem é a mulher em cena. É um "eu" em constante devir. Nas passagens biográficas, Cândido assume a primeira pessoa do singular, como se fosse a escritora. Lendo os contos, encarna as personagens ou se distancia delas, sendo narradora.
A peça é um monólogo, mas Cândido não está sozinha em cena. Ela divide o palco com a pianista Sonia Rubinsky, importante especialista da obra do compositor Heitor Villa-Lobos. A música que será interpretada tem estreita relação com a palavra falada.
"Esses textos de Clarice têm uma particular fluidez, existe um respirar das frases e tudo o que um músico quer é isso", afirma Rubinsky, que venceu, há 16 anos, o Grammy Latino. Além de obras de Villa-Lobos, ela tocará peças de outro brasileiro, Alberto Nepomuceno, e do russo Sergei Rachmaninov.
São modos de evocar a atmosfera enigmática dos contos. Para Cândido, o mundo de Clarice parece menos estranho agora. Há dois anos, ela viveu o papel-título do filme "A Paixão Segundo G.H.", adaptação do romance de 1964, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.
A atriz afirma que a peça e o filme são bem diferentes entre si, mas se ligam nos temas que caracterizam o universo da autora, como a busca pelo sentido da vida. Cândido reconhece a importância que o cinema teve em sua vida, desde que trocou o mundo da moda pela arte.
A encenação de um espetáculo sobre Clarice vindo da Europa reacende o debate sobre a recepção da obra da escritora no exterior. A França é um caso particular. Nos anos 1970, a crítica literária feminista Hélène Cixous, entusiasmada com a leitura de "A Paixão Segundo G.H.", passou a organizar seminários sobre a obra da ficcionista. "Naquela altura, já existiam traduções de Clarice para o francês, mas os ensaios escritos por Cixous foram determinantes para que mais pessoas a lessem no país. também um fenômeno comercial", diz Maria Fernanda.