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Sob a sombra da hipocrisia

Camila Morgado e Thelmo Fernandes na montagem de 'A Falecida', um dos clássicos da dramaturgia rodriguiana | Foto: Divulgação

Camila Morgado retorna aos palcos com a encenação de "A Falecida", clássico de Nelson Rodrigues escrito em 1953. A montagem, dirigida por Sérgio Módena, não poderia estar em local mais apropriado, o Teatro Nelson Rodrigues. A obra, considerada pelo crítico Sábato Magaldi uma das "tragédias cariocas" de Nelson, acompanha Zulmira, mulher tuberculosa e desiludida, obcecada pela ideia de um enterro luxuoso. Em sua lógica distorcida, a pompa do velório serviria de revanche contra a prima Glorinha, com quem mantém uma rivalidade silenciosa.

Pouco antes de morrer, Zulmira convence o marido desempregado a pedir ajuda financeira a Pimentel, um empresário misterioso. Ela deseja um funeral de 35 mil cruzeiros, quantia absurda para a época. Após a morte da esposa, o viúvo descobre que Pimentel era amante de Zulmira e, ao chantageá-lo, consegue dinheiro suficiente para um enterro modesto — o restante ele aposta num jogo de futebol.

Apesar de ambientada nos anos 1950, a peça, segundo o diretor Sergio Módena, segue relevante. "Vivemos ainda sob a sombra da hipocrisia e da falsa moral. O fanatismo religioso abordado por Nelson se torna ainda mais contundente nos dias de hoje. Zulmira trai o marido e é consumida pela culpa. Sua obsessão pelo enterro é um gesto de vingança contra uma vida sem saídas. A morte, para ela, é redenção."

A proposta cênica é marcada por uma estética atemporal. O cenário de André Cortez tem como elemento central um grande mausoléu, símbolo da ostentação social mesmo entre os mortos. Os figurinos de Marcelo Olinto evitam fidelidade histórica e atravessam diferentes épocas.

"Zulmira é um dos personagens femininos mais complexos do Nelson, sua trajetória passa por várias camadas e temperaturas. São transformações importantes que falam deste seu apagamento como um ser desejante. Ela transita pela raiva, pela obsessão, inveja, amor, desejo, fundamentalismo religioso. Representar uma personagem com tantas contradições e sutilezas é maravilhoso, um desafio. Nelson é um escritor que sempre li e quis fazer", disse Camila ao Correio da Manhã durante a passagem do espetáculo por Brasília.

Módena também falou ao Correio e demarcou sua relação com a obra de Nelson Rodrigues e sua criação da montagem. "Eu e Camila somos apaixonados por esse texto e pelo legado de Nelson. E ela é uma atriz rodrigueana por excelência, assim como o Thelmo Fernandes. Esta montagem marca a minha primeira direção de uma obra de Nelson. Estamos criando uma encenação atemporal para a peça que se passa no subúrbio carioca. Mas Nelson vai além. Ele radiografa a miséria da alma humana, presente nos mais diversos lugares e épocas", afirmou o diretor.

"O humor peculiar de Nelson também está presente. Mesmo com toda a tragédia de Zulmira, a peça não abandona a ironia e o riso amargo, que são marcas do autor", completa Módena.

SERVIÇO

A FALECIDA

Teatro Nelson Rodrigues ( Av. República do Paraguai, 230 - Centro)

De 10/4 a 4/5, às quintas e sextas (19h) e sábados e domingos (18h) | Entre R$ 15 e R$ 40