Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Keanu Reeves no divã global

No apogeu de seu sucesso como John Wick, o astro Keanu Reeves retornou à figura do messias Neo em 'Matrix Ressurrections', lançado em 2021 sem grande entusiasmo do público admirador da franquia | Foto: Warner Bros

Onipresente (e animado) hoje no circuito internacional em "Sonic 3", como a voz do vilão Shadow, Keanu Reeves será visto nas telonas muitas vezes em 2025, encabeçando elencos nos filmes "Outcome" e "Boa Sorte, Meu Amigo", além de fazer uma participação como John Wick no esperado "Bailarina", com Ana de Armas. Roda ainda "The Entertainment System Is Down" (traduzido aqui como "Amizade em Altitude"), o novo longa-metragem do diretor sueco Ruben Östlund, ganhador da Palma de Ouro por "The Square" (2017) e "Triângulo da Tristeza" (2022). Tem pela frente ainda a produção de "BRZRKR", épico baseado em HQs escritas por ele (e já lançadas aqui pela ed. Panini).

Antes disso tudo decolar, Keanu tem um compromisso com o Brasil, onde vai encerrar a programação anual da sessão de cinema de maior visibilidade da TV aberta brasileira (desde sua criação, em 1988): a "Tela Quente", da Globo. Esta noite, às 22h30, a emissora exibe "Matrix Resurrections", oferecendo à cinefilia nacional a chance de apreciar uma iguaria que sofreu desdém em cartaz, em 2021, apesar de ser derivada da saga de ficção científica de maior relevo das últimas duas décadas.

Narrativas de imersão, os videogames e o RPG impuseram à dramaturgia uma dimensão sob a qual os contadores de história não tinham plenitude: a interatividade. Em qualquer "Pac-Man" de botequim, ou no "Dungeons & Dragons" mais primário, o receptor da narrativa é um coautor com o poder de interferir nos rumos da contação. Até o fim dos anos 1990, quando a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo e uma série de eventos do dito mundo real tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção, não se encontrava no cinema um debate (minimamente rico) sobre protagonismo das práticas de narrar. Isso se limitou a faculdades de Comunicação, em leituras de Jean Baudrillard, Pierre Lévy e Paul Virilio, até "Matrix" estrear, em 1999. Aquele filme (filmaço, diga-se de cara!) chegou as telas com a proposta de transformar em fantasia a teoria da "jogabilidade", apoiando-se em uma estrutura de ação mais espetaculosa do que as reportagens das guerras do Oriente Médio feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando kung fu com Kant e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões se impôs como revolução - ditando os rumos das veredas ficcionais da década seguinte, com seus enquadramentos e seus efeitos especiais - ao levantar uma teoria da conspiração acerca do conceito do "interativo": e se, no dia a dia, alguém "jogasse" a vida por nós?

Um segundo filme ("Matrix Reloaded") foi feito em 2003, e abriu o Festival de Cannes de então, ampliando inquietações do longa original sob um prisma de enfrentamento que acabou sendo derrubado pelo terceiro tomo da franquia, "Revolutions". Este, também de 2003, era pautado por uma noção de "aceitação" do impasse. O gosto amargo de que uma saga memorável foi fechada pela submissão aos procedimentos do viver, numa reflexão menos kantiana e mais próxima de Wittgenstein ("o que não se pode falar se deve calar"), caiu por terra, 21 anos depois do início do projeto, com a chegada de "Matrix Resurrectios".

Orçado em US$ 190 milhões, o quarto (e lírico) capítulo da franquia foi lançado num momento de "transição" de suas vozes autorais. Agora, em sua vivência de mulher trans, Lana Wachowski conduz a direção da cinessérie com a mesma inquietação que se viu no longa de 1999, fazendo um novo "chamado pra guerra", construído sob o princípio de que máquinas reconfiguraram "o sistema", recuperando todo o controle que antes era compartilhado com a Humanidade, oferecendo ao Salvador, Neo (um inspiradíssimo Keanu Reeves), uma letárgica inércia. O bug que o leva ao despertar é o bug do querer, movido pelo desejo por alguém que a distância não apagou: Trinity, vivido por uma Carrie-Anne Moss avassaladora. O resultado é um novo game... passional e furioso.

Algoritmos formulaicos da indústria audiovisual não se aplicam ao que "Matrix Ressurrections" investiga num processo de autocrítica do pop. É um divã freudiano disfarçado de aventura sci-fi, com Neil Patrick Harris em estado de graça em cena, a ressignificar conceitos de vilania no papel do Analista. Lana constrói planos com uma elegância invejável, demonstrando o quanto evoluiu como realizadora em duas décadas. Faz um filme cerebral, mas envolvente, regado de adrenalina.

Na versão que a Globo transmite hoje, Garcia Junior dubla Reeves. Aliás, a dublagem ficou impecável, com o dínamo Marcelo Garcia cedendo o vozeirão a Patrick Harris.