Janeiro é tempo de a Globo flertar com superproduções de Hollywood, expandindo a cota cinéfila de sua grade para uma seleção - quase sempre hollywoodiana - transmitida após a novela das 21h ("Mania de Você"), o que abre espaço, nesta quinta, às 22h20, para "Adão Negro" (2022). A sessão, (bem) dublada, assegura uma segunda chance de prestígio popular para uma adaptação de HQs da DC Comics. É um exercício radical na mitologia dos quadrinhos que foi recebida com (uma injusta) frieza em sua estreia. Hoje é noite de o vilão encarnado por Dwayne The Rock Johnson (e dublado por Garcia Júnior) provar para o público brasileiro o bom personagem que é.
Dono de um dos cachês mais altos de Hollywood da atualidade, Dwayne, um ex-campeão de luta livre, consegue se sair muito bem em sua incursão no filão de adaptações de super-herói, encarnando um ser sombrio, com poderes e onipotência de divindade. Ele só não dura muito tempo no ringue da excelência quando Pierce Brosnan aprece a seu lado. É o 007 da década de 1990 quem toma "Black Adam" (título original da fita) para si, ainda que seu astro principal filtre seus cacoetes interpretativos e encontre uma interseção entre a fúria e comiseração, num paradoxo raro. O diretor catalão Jaume Collet-Serra (de "A Órfã" e "Desconhecido") não teve como trazer seu ator fetiche, Liam Neeson, pro elenco. Ainda assim, deitou e rolou no carisma de Brosnan, uma vez que sua especialidade são figuras heroicas grisalhas. Com um orçamento inflacionado de US$ 190 milhões para cerca de US$ 250 milhões, o realizador entrega à Globo hoje um eletrizante espetáculo visual decalcado de gibis da DC, a editora do Superman. Mescla bem Geografia com adrenalina (artigo escasseado pela correção política), abrindo fogo contra o intervencionismo militar exportado pelos EUA para o mundo. Ganha força plástica na direção de arte de Beat Frutiger e Tom Mayer, mesmo soterrado numa overdose de efeitos visuais.
Brosnan é o sol dessa narrativa, que frisa a dimensão soturna da DC-Warner-HBO Max no trânsito pelas mitologias dos comics, diferentemente do perfil parque de diversões da Marvel. Aos 71 anos, com 105 produções num currículo iniciado em 1980, Brosnan chamou a atenção dos brasileiros, na própria Rede Globo, como o Remington Steele da série "Jogo Duplo", que durou 94 episódios, entre 1982 e 1987. A intimidade dele com o universo da espionagem deu uma guinada com o hoje esquecido "O Quarto Protocolo" (1987), de John Mackenzie, o que habilitou seu perfil pra herdar de Timothy Dalton o posto de James Bond. De "GoldenEye" (1995) a "Um Novo Dia Para Morrer", lançado há 23 anos, ele foi um Bond rentabilíssimo, que garantiu à franquia 007 um faturamento estimado em US$ 1,5 bilhão. Depois disso, recebeu indicação ao Globo de Ouro ("The Matador"), cantou com Meryl Streep (em "Mamma Mia! O Filme") e fez thriller premido na Berlinale com Roman Polanski ("O Escritor Fantasma"). Agora, é a vez de emprestar sua sabedoria a um dos personagens mais enigmáticos dos quadrinhos: Kent Nelson, o guardião do elmo mágico de Nabu, mais conhecido como Sr. Destino.
Criado em maio de 1940, por Gardner Fox, na revista "More Fun Comics" #55, Destino é a dose precisa de magia no planisfério pluralíssimo de vigilantes da DC, que encontra um lar na Sociedade da Justiça. Na trama filmada por Collet-Serra, ele vai até o reino de Kahndaq, uma mistura do Irã de hoje com o Iraque da Guerra do Golfo (sob uma ótica catastrofista), onde o Adão Negro desperta de um sono milenar para salvar seu povo do jugo de mercenários, a Intergangue. Sua violência desmedida obriga a Sociedade, liderada pelo Gavião (um inspirado Aldis Hodges), a agir, calcando-se nas habilidades de um par de jovens: Cyclone (Quintessa Swindell) e Esmaga-Átomo (Noah Centineo). Só o Sr. Destino parece capaz de tocar aquele coração empedernido pelo ódio e ofertar ao público, graças ao talento de Brosnan, uma aula sobre responsabilidade. No Brasil, Luiz Carlos Persy, um gênio da dublagem, empresta a voz a Brosnan.
Nesta sexta, a Globo, na sessão "Cinema 25", também às 22h20, viaja a Gotham City para conferir o desempenho do britânico Robert Pattinson como Bruce Wayne. Sexta vai ter "The Batman" (2022) na telinha, no Plimplim. A bilheteria de US# 770 milhões, a conquista de uma capa na revista "Cahiers du Cinéma" (a Bíblia da cinefilia) e a indicação a três Oscars asseguraram êxito ao longa, que é pilotado por Matt(hew George) Reeves. Nova-iorquino, o cineasta foi revelado em 1996, com a elogiada comédia romântica indie "O Primeiro Amor de um Homem", e logo passou a ser classificado como um talento promissor, sobretudo depois de rodar "Cloverfield: Monstro", em 2008.
É difícil não pensar em "Se7en" (1995), cult de David Fincher com Brad Pitt e Morgan Freeman caçando o assassino que reproduzia os Sete Pecados Capitais em suas mortes, ao acompanhar o modo como o Batman de (um inspirado) Pattinson e o tenente James Gordon (Jeffrey Wright) investigam os crimes dignos das bestiais perversões da franquia "Jogos Mortais" cometidos pelo Charada. Esse é "o" achado de Reeves. Foi um acerto escalar Paul Dano. Ele vive o Mestre dos Enigmas. Sua atuação converteu um dos vilões mais inofensivos do Morcego em uma das mais assustadoras encarnações do Mal do cinema nos últimos anos. Não é dinheiro o que move o Charada; é a anarquia. O problema é que não há Bakunin em sua cabeça. Há sede de sangue.
Antes de assumir a tarefa de reinventar o Batman, Reeves fez dois longas da saga "Planeta dos Macacos", em 2014 e em 2017, sendo este segundo, o mais aclamado, sobretudo pela forma como dirigiu Woody Harrelson. Em ambas essas distopias, o personagem central, o símio César, era encarnado por um processo de motion capture (captura de movimentos reais que são animados em efeitos digitais) pelo ator e cineasta Andy Serkis, que entra em "The Batman" como o mordomo Alfred.