"Mães de Haia": brasileiras lutam na justiça por seus filhos

Na avaliação de advogados que defendem mulheres atingidas, a aplicação da convenção em muitos casos vem se dando de uma forma automática. Que desconsidera a exceção 13-B da própria convenção, que excepcionaliza o repatriamento se houver a constatação de tratamento abusivo, risco ou violência à criança.

Por Gabriela Gallo

O Senado discutiu no início de outubro mudanças na Convenção de Haia

Há algumas semanas, o Correio da Manhã contou a história de Raquel Cantarelli, uma brasileira que teve as duas filhas levadas para a Irlanda, lugar onde elas nasceram, com base em uma interpretação da Convenção de Haia. Desde então, ela luta na justiça para conseguir a guarda das crianças e trazer as filhas de volta. Mas o caso de Raquel não é isolado. A brasileira Luíza* está na justiça, ainda em primeira instância, para conseguir manter a guarda do filho e impedir que ele seja levado para a Bélgica.

O caso está suspenso na Vara da Família de Brasília e, enquanto a decisão do juiz não é deferida, ela mora junto com o filho, uma criança autista de cinco anos. Ao mesmo tempo, o caso tramita também na justiça da Bélgica, que já deu a guarda para o pai e terá uma decisão final, após todos os recursos, em novembro.

Estabelecida em 1980, a Convenção de Haia é um importante instrumento internacional que trata da subtração de crianças. Com base nela, crianças que são levadas para fora dos países onde nasceram têm o direito de ser repatriadas. Na avaliação de advogados que defendem mulheres atingidas, a aplicação da convenção em muitos casos vem se dando de uma forma automática. Que desconsidera a exceção 13-B da própria convenção, que excepcionaliza o repatriamento se houver a constatação de tratamento abusivo, risco ou violência à criança.

À distância

Esse é o caso relatado por Luiza, que, nesse ponto, assemelha-se ao de Raquel Cantarelli. Em 2017, Luíza saiu do Brasil em direção à Bruxelas, capital da Bélgica, grávida de sete meses para morar com seu então namorado da época e eles construírem uma família juntos. “Eu tinha um relacionamento à distância. Me encontrava só em viagens com o pai do meu filho. Ele é holandês e mora na Bélgica. Eu era a diretora de uma multinacional aqui no Brasil. Eu engravidei e decidi ir para a Bélgica para ter meu filho perto do pai”, narrou Luíza em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã.

Mas chegando no país, os planos não seguiram como planejado. “Ele se recusou a casar. Então, eu não consegui um visto de europeia. Eu era sempre uma imigrante com visto de residência permanente atrelada à União estável. Eu tinha entendido que a gente faria um contrato, um casamento no civil. Eu cheguei a pensar em voltar, mas eu já cheguei lá com sete meses [de gravidez]. Eu não podia mais pegar um avião com oito meses para voltar. Então, eu fui ficando e vendo que a situação ia piorando”, disse.

Suporte

Quando o filho do casal nasceu, a brasileira não tinha nenhuma rede de apoio ou suporte do próprio companheiro. Apesar de ser fluente em inglês e ter diversas certificações, ela não conseguiu um emprego, especialmente porque precisava aprender a falar francês, o idioma da Bélgica, e cuidar do filho. Já nos primeiros meses de vida, a criança teve que realizar duas cirurgias e não aceitava ficar longe da mãe. Ela até tentou começar um mestrado, mas não conseguiu continuar.

“Ele não se adaptou à creche. Tinha crises muito fortes quando se separava de mim. Ele foi internado porque se recusou a beber água, não comia mais na creche. Aí, eu desisti do meu mestrado para poder cuidar do meu filho em casa”, ela contou.

Até que chegou a pandemia de covid-19 e as violências aumentaram. “Eu comecei a perceber uma violência psicológica forte e também patrimonial quando o meu dinheiro da rescisão acabou. O controle era total, o ciúme era enorme, mesmo que eu quase não saísse de casa. Ele nunca pagou por nenhum serviço em casa ou curso que eu fizesse, tudo eu que pagava”, contou Luíza. “No último ano na Bélgica, eu estava submetida a violência em casa, sob ameaça, porque eu já estava tentando sair há muito tempo. Eu procurei ajuda em assistência social e eles disseram que, como eu não era europeia, eu não tinha direito a serviço gratuito. Se a violência não for física ou ‘óbvia’, não é considerada violência”, completou.

Volta ao Brasil

No ano passado, a família veio passar férias no Brasil. E, na véspera do retorno para a Bélgica, o então casal teve uma discussão e, mais uma vez, ela foi ameaçada. “Ele falou: ‘Você não tem ideia do que vai acontecer com você quando você voltar para a Bélgica’. E eu entrei em pânico. Eu já estava tão frágil com tudo que estava acontecendo com dois anos intensos tentando sair de casa que eu tive sintomas físicos. Eu fiquei apavorada. Nós estávamos indo a um hospital para buscar notas fiscais de um atendimento e, quando eu fui pedir os documentos, desmaiei”, narra ela.

Quando a brasileira acordou no hospital, começou a gritar o nome do filho, com medo de que o pai tivesse fugido com ele. Inicialmente, a equipe de saúde sugeriu chamar o então companheiro dela, e a brasileira começou a negar desesperadamente. “Parece que eu gritei o ‘não’ com tanto medo que eles fecharam a porta, trouxeram uma enfermeira para conversar comigo e disseram que eles podiam trazer uma assistente social e chamar a polícia. Eles viram que era um caso de violência doméstica”, ela relatou.

Após uma longa conversa com uma médica que também tinha sido vítima de violência doméstica, Luíza resolveu abrir uma medida protetiva contra o genitor de seu filho saindo do hospital. Sete dias depois, o pai deu entrada no processo de Haia e começou a briga judicial para a guarda da criança.

Em 20 de setembro, ele deixou o Brasil. Antes, um processo de guarda do filho na Vara da Família, invocando a Convenção de Haia. O processo começou a correr e, enquanto isso, Luíza tem a guarda unilateral do filho. A perita do processo no Brasil usou a exceção 13-B da convenção como justificativa para ficar com o filho. Ela alega que há um grave risco para a criança caso ele seja afastado da mãe.
“Meu filho já foi hospitalizado três vezes por afastamento de mim, em tentativas de adaptações escolares, tanto no maternal quanto na escola. Nesses afastamentos, ele teve crises tão fortes que chegou a ser hospitalizado, teve que ficar no soro porque parou de comer e de beber água”, ela relatou.

Revisão

Inicialmente, Luíza não queria abrir um boletim de ocorrência contra o pai do seu filho, por medo de perder a guarda da criança. “Eu não planejava ficar [no Brasil]. Eu tinha conhecimento da Convenção de Haia porque eu tinha falado com uma organização que ajuda mulheres na Europa, de brasileiras, elas me falaram da convenção e me disseram que eu nunca conseguiria sair de lá. Porque elas não conheciam casos em que as mulheres saíssem e conseguissem a guarda do filho”, contou à reportagem.

A reportagem conversou com Stella Furquim, uma das fundadoras do Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior (Gambe), uma organização que oferece apoio jurídico a mulheres em situação de vulnerabilidade no exterior. Para a reportagem, ela comentou que um dos principais pontos que precisa ser revisto na convenção é a observação maior da violência doméstica.

“A violência doméstica tem que ser algo que englobe as crianças e conte como grave risco para ela retornar, mesmo porque uma mulher que sofre violência doméstica num país estrangeiro e não consegue apoio nem para fazer um boletim de ocorrência, ela não pode retornar àquele país com segurança. E a criança ir sem a mãe muitas vezes não é uma opção. Na maior parte dos casos, as mães são as cuidadoras principais dessas crianças. Então, essas crianças estariam sendo traumatizadas ao serem afastadas das suas cuidadoras principais”, disse à reportagem.

*A reportagem usou um nome fictício para preservar a identidade da personagem, por orientação dos seus advogados