Por: Gabriela Gallo

Os dramas da pátria (amada) nova

30 anos sem pátria. Maha tornou-se brasileira | Foto: Acnur

Pela primeira vez, a ex-apátrida e hoje brasileira Maha Mamo fez o lançamento físico do seu livro: “Maha Mamo: A luta de uma apátrida pelo direito de existir”, da editora Globo Livros, em parceria com o jornalista Darcio Oliveira. O lançamento aconteceu durante o evento “Semana de Inovação 2023” na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), em Brasília, na última semana. No dia do lançamento, onde a reportagem esteve presente, ela deu mais detalhes sobre sua história de 30 anos de luta para ela e seus dois irmãos terem uma nacionalidade.

A história de Maha Mamo é tão extensa e completa que vai se transformar em um filme. A previsão é que o longa-metragem saia no 2? semestre de 2024, dirigido por Bruno Barreto, autor, entre outros, de “Dona Flor e seus Dois Maridos”.

Apátrida

Maha Mamo nasceu e cresceu grande parte da sua vida em Beirute, capital do Líbano. Os pais dela, George e Kifah, são sírios. Como ele é cristão e ela muçulmana, tal casamente interreligioso era proibido na Síria. O casal fugiu da Síria para o Líbano para conseguir se casar. Lá, eles tiveram três filhos: Souad, Eddy e Maha.

Porém, ao contrário do Brasil, aonde a nacionalidade vem do local de nascimento, no Líbano a nacionalidade é concedida pelo sangue. Portanto, Maha e seus irmãos cresceram como apátridas, ou seja, pessoas que não têm nenhuma nacionalidade. Sem documentos com seus nomes registrados, não tinham direitos básicos de cidadãos, como ir a hospitais públicos ou escolas, vivendo nas sombras.

A primeira escola que aceitou os três irmãos quando eles eram crianças foi uma escola armênia. “Dentro da escola, você é uma criança e usa o mesmo uniforme que os outros alunos, então não dá para perceber as diferenças. Entã,o eu não sabia se eu tinha documento ou não, se eu era síria, libanesa, ou o que fosse. Eu só achava que eu era diferente dos outros porque na minha casa a gente não falava em armênio”, relatou Maha.

Mas à medida que ela ia crescendo, começou a sentir na pele os impactos de não ter documentos. Ela descobriu pela primeira vez os problemas da falta de documentação (e de identidade) aos 15 anos, porque não conseguiu viajar com a equipe de basquete da qual fazia parte. Depois, o mesmo se repetiu quando ela era escoteira. Mas a situação era muito além de simplesmente não conseguir viajar ou sair de seu país natal. Ela conta que até para ir ao hospital era uma luta.

“Com o tempo, eu comecei a ser consciente dos outros problemas que eu tinha. Eu tenho uma alergia que no Líbano me atacou várias vezes. Quando [ela] me ataca, eu começo a me coçar, começo a inchar e tenho que correr para o hospital. A primeira vez que eu cheguei [no hospital], estava desmaiada e precisava de atendimento muito rápido. E eles [hospital do Líbano] não queriam me atender. A minha melhor amiga pegou os documentos dela e os apresentou para que eu pudesse ser atendida”.

Ela tentou contato com diversos países do mundo para tentar conseguir uma nacionalidade e foi rejeitada por todos, já que sempre faltava um documento (um visto, um passaporte, uma identidade), que a impedia. O único país que a aceitou foi o Brasil.

Impacto

Em 2014, o Brasil implementou um visto humanitário especial para sírios, em decorrência da Guerra na Síria. E essa foi a brecha necessária para os três irmãos conseguirem pegar os documentos e irem para o Brasil. “O Brasil foi o primeiro país que me deu um documento de viagem. Foi o primeiro país que me reconheceu como ser humano”, destacou.

Em setembro de 2014, os três irmãos estavam reunidos em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em maio de 2016, ela e a irmã ganharam um título: refugiadas. Mas, apesar da conquista, 2016 foi um ano trágico e marcante para toda a família. Pouco antes de serem reconhecidos como refugiados, o irmão de Maha, Eddy, morreu durante uma tentativa de assalto. O impacto da morte do irmão levou à separação dos pais.

O sonho de Eddy era voltar para sua casa, no Líbano. Então, a família tentou levá-lo para que fosse enterrado na terra natal. Na época, o governo do Líbano apresentou resistência e o então embaixador do Líbano do Brasil queria vetá-la. Mas após muita luta e tentativa, ela conseguiu resolver a questão, e Eddy foi enterrado no Líbano. “Naquele momento, eu percebi que eu tinha o apoio do Itamaraty, do Ministério da Justiça e das pessoas que eu conhecia no Brasil”, ela relembrou.

Em 2017, foi sancionada a Lei da Migração nº 13.445. E nessa lei, com a contribuição de Maha, a Constituição brasileira passou a reconhecer os apátridas. Em julho de 2018, Maha e sua irmã foram reconhecidas como apátridas e, finalmente, em 4 de outubro de 2018, elas viraram cidadãs brasileiras.

Pertencimento

Maha conta que o sentimento dela de pertencimento no Brasil começou muito antes de conseguir ganhar sua nacionalidade. Uma amizade em Belo Horizonte foi o caminho para fazer crescer o sentimento pelo Brasil. Essa amiga mineira foi muito importante para a vida de Maha. “Desde que a gente se conheceu, ela não olhou pra mim como uma ‘coitada refugiada’, ela olhou pra mim como um ser humano”, relembrou Maha.

“Ela começou a me ensinar português num guardanapo. Ela me chamava para sair com os amigos dela, e eu comecei a sentir esse acolhimento. Depois de sete meses morando no Brasil, a minha melhor amiga veio me visitar no Brasil. E quando ela veio, nós fomos para o Rio de Janeiro só nós duas e eu comecei a me virar. Quando eu comecei a me virar com o meu português, comprando as coisas, pedindo comida em restaurante, isso foi muito legal. O pertencimento começou quando eu comecei a falar português. Não foi quando eu ganhei a nacionalidade [brasileira], foi bem antes”, contou a agora brasileira.

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