Na última semana, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou a campanha "Os 20 anos da visibilidade trans no Brasil", para celebrar as duas décadas da campanha "Travesti e Respeito". Foi exatamente no dia 29 de janeiro de 2004, que o Ministério da Saúde lançou, no Congresso Nacional, a mobilização que tratou de direitos, além de infecções sexualmente transmissíveis e a aids. A data tornou-se um marco no combate à transfobia no Brasil e o ponto alto do mês da visibilidade trans.
Após essa movimentação, o mês de janeiro traz reflexões sobre a importância da visibilidade de pessoas transgênero no Brasil, aceitação da transexualidade; representatividade e luta por acesso à saúde, à educação, à geração de emprego digno e renda e ao enfrentamento ao preconceito e à discriminação. Com essa nova campanha, após 20 anos, o MDCH aponta avanços conquistados e também lembra da luta e dos desafios enfrentados pela comunidade trans brasileira.
No Rio, conversamos com um dos principais nomes que trabalham na defesa da população trans, não só no estado, como em todo o país. Sharlene Rosa, mulher trans e coordenadora do Centro de Cidadania LGBTI — Baixada I, em Duque de Caxias (RJ), falou sobre a importância da data. "O Dia da Visibilidade Trans, que completa 20 anos de campanha em 2024, desempenha um papel fundamental na minha história e na de tantas outras pessoas trans. Esta data não apenas nos lembra das lutas que enfrentamos no passado, mas também nos inspira a continuar lutando por igualdade, respeito e reconhecimento. Ao longo dos anos, o Dia da Visibilidade Trans tem se tornado cada vez mais importante na conscientização pública sobre as questões que afetam a comunidade trans e na promoção da aceitação e inclusão em nossa sociedade", explicou.
Obstáculos e preconceitos sempre surgiram na vida de Sharlene que, mesmo assim, superou todos eles para conseguir chegar onde está. "É incrível pensar na jornada que percorri desde os meus dias como Auxiliar de Serviços Gerais até chegar à posição política que ocupo hoje. No passado, enfrentei uma quantidade significativa de discriminação e obstáculos simplesmente por ser uma pessoa trans. No entanto, minha determinação e compromisso com o trabalho duro me levaram a superar esses desafios e a alcançar o sucesso que desfruto hoje", relembrou.
Quando o assunto é política, tivemos um marco em nosso país em 2023, ao termos empossadas duas mulheres trans no parlamento federal: as deputadas Erika Hilton (PSol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Sharlene não deixou de enaltecer esta conquista e falou também sobre a importância das duas estarem ocupando duas cadeiras no Congresso Nacional. "A presença de duas deputadas trans eleitas, como um marco na política, é um testemunho do progresso que estamos fazendo. Ver figuras como Erika Hilton ganhando destaque e voz nas sessões plenárias é encorajador e inspirador. Embora ainda haja muito trabalho a ser feito para garantir uma representação política verdadeiramente inclusiva, cada passo em direção a esse objetivo é significativo. A mudança pode parecer pequena em comparação com os desafios que enfrentamos, mas é um lembrete poderoso de que estamos avançando na direção certa. Estou otimista em relação ao futuro e comprometida em continuar", finalizou.
Realidade política
Como já antecipou Sharlene, por mais que existiram mudanças, ainda há muito a ser feito por direitos iguais e também em combate ao preconceito. Ainda na política, um breve levantamento divulgado pela Folha, nesta semana, denunciou que o Brasil tem mais de 70 leis municipais e estaduais em vigor, em 18 estados, que buscam cecear direitos de pessoas trans.
Proponentes dessas leis negam que elas tenham caráter antitrans, afirmando que ajudam a proteger os direitos de crianças e mulheres e a resguardar a liberdade religiosa. Por outro lado, especialistas dizem que essas normas promovem a institucionalização da transfobia e podem estimular a violência contra uma das parcelas mais marginalizadas da população.
Boa parte delas veda o uso da chamada linguagem neutra ou impede debates sobre a temática de gênero nas escolas, contrariando decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao menos 11 leis antitrans já foram consideradas inconstitucionais pela Justiça.
Há também restrições ao compartilhamento de banheiros e à participação de atletas trans em competições esportivas. Outras normas proíbem crianças e adolescentes trans de acessar determinados serviços de saúde e de participar de Paradas do Orgulho LGBTQIA . Existem ainda leis que buscam censurar materiais publicitários com conteúdos alusivos à diversidade de gênero.
O número de normas antitrans em vigor pode ser ainda maior, uma vez que a busca de leis municipais se restringiu a cidades com mais de 100 mil habitantes. Esses locais concentram 57% da população do país, mas representam somente 5,7% do total de municípios, de acordo com dados do Censo de 2022 do IBGE.
As primeiras leis deste tipo do país foram promulgadas em 2015 em Novo Gama (GO), uma cidade-satélite de Brasília. Uma delas, que proíbe o ensino da chamada ideologia de gênero nas escolas do município, foi considerada inconstitucional pelo STF em 2020.
O ritmo de produção dessas normas acelerou a partir de 2021. Naquele ano, foi promulgada em Rondônia a primeira lei estadual antitrans, que proíbe a linguagem neutra nas escolas --o STF declarou a sua inconstitucionalidade no ano passado, por entender que o assunto é de competência da União e foge da alçada dos estados e municípios.
Em Boa Vista (RR), há quatro leis em vigor. Nos últimos dois anos, passou a ser proibido debater gênero, usar linguagem neutra e instalar banheiros unissex nas escolas do município, e também entrou em vigor uma lei de veto esportivo.
A refugiada venezuelana Paola Abache, que é trans, relata já ter sido impedida de acessar banheiros femininos na cidade. Jogadora de vôlei, também diz ter sido proibida de jogar com outras mulheres devido à sua identidade de gênero. "Na Venezuela, eu sofria discriminação porque o país infelizmente não tem leis para proteger a população trans. Pensei que aqui no Brasil os nossos direitos seriam respeitados, mas não foi o que aconteceu", afirma.
Quando soube da existência das leis antitrans, Abache, 23, diz que "foi como levar um soco". Por outro lado, a refugiada conta ter sido bem recebida pela comunidade LGBT da capital roraimense. "Conheci muitas pessoas maravilhosas que abriram as portas para mim. É graças a elas que estou forte", diz.
No final do ano passado, o Senado incluiu na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) proibição para que o Orçamento de 2024 fosse usado em ações para influenciar crianças e adolescentes a fazer transição de gênero, mas o trecho acabou sendo vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Julia Ehrt, diretora-executiva da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Interssexuais (Ilga), vê com preocupação o avanço das leis antitrans no Brasil. Ela lembra que a ofensiva contra os direitos da população LGBT é um fenômeno que se estende desde democracias consolidadas, como os EUA e o Reino Unido, até regimes autoritários como Rússia e Uganda. "A narrativa antitrans é parte de um movimento mais amplo contra os direitos LGBT e das mulheres. Há organizações com muitos recursos que trabalham para avançar essas agendas globalmente", afirma Ehrt. Ela defende que esses grupos se articulem em nível internacional para fazer frente à ofensiva conservadora.
Parlamentares negam
Ainda segundo a Folha, parlamentares ouvidos pela reportagem negaram que as leis citadas tenham caráter antitrans e afirmam buscar a garantia de direitos para outros grupos diante de uma suposta ameaça representada por pessoas trans.
O vereador Ilderson Pereira Silva (PTB), autor de leis sobre banheiros e esportes em Boa Vista, afirma que seu intuito é prevenir casos de assédio. "A lei em questão trata especificamente de banheiros e vestiários nas escolas públicas e privadas. Pessoas do sexo feminino se sentem desconfortáveis com a presença uma pessoa transgênero em um ambiente que, por mais que seja compartilhado, ainda é um espaço íntimo", diz em nota.
O parlamentar também diz buscar a garantia da equidade no esporte. "Mesmo que com mudanças estéticas e hormonais, haja possibilidades de diminuição da resistência muscular e capacidade aeróbica na comparação entre uma mulher trans e um homem cisgênero, ainda não há estudos suficientes sobre o caso", afirma Silva. O político também diz que conta com pessoas trans em sua equipe e que as trata pelo nome social.
Já o vereador Zelio Mota (PSD), autor da lei sobre linguagem neutra em Boa Vista, nega haver cerceamento de direitos e afirma que seu objetivo é garantir os direitos das crianças e pré-adolescentes de serem alfabetizados com a norma culta da língua portuguesa.
Ele afirma respeitar a decisão do STF que derrubou a lei de Rondônia sobre linguagem neutra. "É notório que a lei municipal não fere princípios da nossa Constituição Federal, está em total consonância com as normas vigentes da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e assegura o uso da língua oficial brasileira nas escolas municipais", diz Mota em nota.
A vereadora Flávia Borja (PP), autora de uma lei que garante a instituições religiosas e escolas confessionais de Belo Horizonte (MG) a atribuição do uso de seus banheiros de acordo com a definição biológica de sexo, afirma que "quando alguém tenta, de forma agressiva, impor suas vontades dentro desses lugares nós entendemos que o desejo primário é afrontar a fé que é professada ali".
"Por isso, essa lei aprovada em BH é necessária para uma melhor segurança jurídica de líderes religiosos e instituições educacionais confessionais", afirma em nota Borja, que também é pastora da Igreja Batista da Lagoinha.
A reportagem da Folha não obteve repostas, até o fechamento desta edição, do deputado estadual Eyder Brasil (PL-RO), autor da lei sobre linguagem neutra em Rondôni, e nem da Prefeitura e a Câmara Municipal de Novo Gama (GO). O Correio da Manhã reproduz essa levantamento e fica à disposição de alguma parte envolvida queira se pronunciar.
*Com informações de Dani Avelar (Folhapress)