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A história em ruínas: a sobrevivência através do voluntariado

Raízes de embaúba se entrelaçam pelo telhado do museu, penetrando pelas paredes | Foto: Arquivo pessoal/Ricky Seabra

Por Mia Andrade

O Museu Histórico do Crato e o Museu de Arte Vicente Leite estão instalados em um prédio histórico que remonta ao final do período colonial brasileiro. Testemunha das transformações do município e do Ceará ao longo de mais de dois séculos, o edifício agora enfrenta desafios sérios devido à negligência e falta de manutenção.

Apesar de sua importância cultural e histórica, o prédio sofre há quase uma década com problemas estruturais e falta de cuidados adequados. Tentativas de reforma foram mal sucedidas, incluindo uma iniciativa que resultou na interdição do andar que abriga o Museu de Arte Vicente Leite.

As gestões anteriores do museu enfrentaram dificuldades para manter o acervo e as instalações em condições adequadas. Além disso, a burocracia e a falta de recursos têm sido obstáculos constantes para a realização de obras de manutenção e revitalização.

Apesar dos esforços do ex-diretor, Ricky Seabra e da equipe (que incluía voluntários e funcionários) para manter os museus ativos através de voluntariado e projetos, o apoio prometido pelas autoridades locais não se materializou, deixando o patrimônio histórico do Crato em estado de abandono e deterioração.

Na reportagem anterior do Correio da Manhã, exploramos os desafios enfrentados pelo Museu Histórico do Crato e o Museu de Arte Vicente Leite em meio à negligência e à falta de recursos.

Uma noite (familiar)
no museu

Com o passar dos meses na direção dos Museus, Seabra passou a buscar formas de atrair o público e tornar a população do Crato mais engajada na cultura. E através de abordagens diferentes do tradicional, o museu foi se tornando parte da rotina das famílias da região.

Seabra conta que uma das primeiras coisas que reparou foi que, em média, o Museu Histórico recebia cerca de uma visita por hora. Isso significa, em média, oito visitantes por dia. No início, a baixa procura preocupou o diretor, mas, segundo ele, o jeito foi transformar o desafio em uma oportunidade.

"Uma noite fiquei sem internet em casa e resolvi ir para o museu usar a internet por lá. Enquanto eu trabalhava sozinho no museu um casal chegou na porta perguntando se o museu estava aberto. Falei que não e eles responderam que as luzes do museu estavam acessas. Olhei para dentro do museu e de fato eu havia esquecido todas as luzes acessas ao fechar aquele dia. Embora estivesse oficialmente fechado, decidi abrir as portas para eles e fui guiando a visita. Para minha surpresa, além dos dois que entraram, outras pessoas começaram a aparecer e explorar o museu de forma noturna. Decidi então abrir o museu regularmente à noite e o número de visitantes aumentou. Em uma noite movimentada, recebíamos cerca de cem pessoas por hora. Isso mostrou que havia uma demanda real por atividades culturais noturnas na cidade, já que a Praça da Sé, em frente ao museu, tem uma circulação alta de famílias à noite", conta.

A decisão de manter o museu aberto à noite foi apoiada por voluntários da comunidade, especialmente estudantes de uma escola local de artes e cultura, que se mostraram entusiasmados em participar do projeto. A partir daí, a programação começava às 19h, após a missa local e ia até as 21h, com famílias, idosos, crianças e jovens interessados em conhecer mais sobre as peculiaridades do município.

A mudança não só aumentou o número de visitantes no local, mas transformou o espaço em um ponto de encontro cultural para a comunidade. Seabra relata que os idosos, em particular, passaram a frequentar e compartilhar suas histórias e memórias relacionadas ao prédio dos Museus.

"Uma delas foi a dona Zefinha, que contou para a gente que chegou a ser presa na cadeia onde fica o Museu Histórico do Crato. Ela contou que queria se casar com um rapaz mas o pai dela, pra evitar o casamento, mandou prender a própria filha", relembra.

Para Seabra, as histórias sobre a Câmara e Cadeia do Crato acabaram se perdendo com o tempo e por isso, abrir a noite, trouxe a oportunidade de resgatar essa parte histórica do município. "Normalmente, é o museu que informa, mas os papéis foram invertidos desde que passamos a abrir à noite. Os mais velhos sentiam a necessidade de compartilhar o que aconteceu nas celas e no pátio, ressaltando a importância de registrar essas histórias para futuras pesquisas e estudos históricos", explica.

A partir das visitas noturnas, alguns projetos foram surgindo como o cinema noturno, onde cineastas cearenses e cratenses poderiam mostrar suas produções para o público; artistas emprestando suas obras para exposições.

"Por conta de um filme da cineasta da cidade de Potengi, Cheyenne Alencar que passou no Cinema aos Sábados, algumas crianças que frequentavam o nosso museu passaram a contar histórias de que a bruxa de um dos filmes morava em cima do museu. Era muito legal ver a forma como as crianças, as famílias e os idosos interagiram. Isso é que movia o nosso museu na época, a interação e a cultura cada vez mais fortes", relembra.

Além disso, Seabra afirma que o intuito era envolver famílias inteiras no museu, tanto através das escolas quanto do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). "Acredito que o museu deveria ser uma extensão da família e não só da escola. Assim, famílias podem criar memórias em torno do museu desenvolvendo um laço afetivo/familiar com o museu. Assim, criaria uma geração de pessoas que zelarão com mais fervor pelo museu e pelo patrimônio", relata.

Mesmo com os desafios estruturais, o ex-diretor afirma que a ideia não era esconder o problema e sim escancarar, uma vez que esses desafios criam uma conexão com a comunidade. "Para o museu funcionar é só abrir. Existe uma mania no Brasil de que é preciso interditar ou abandonar os museus até sair um projeto, um recurso ou um edital. Acredito que quando mostramos a dificuldade que o museu passa, a comunidade percebe que a vida não é perfeita. Que é preciso um trabalho para preservar nosso patrimônio e que essas pessoas que frequentam fazem parte desse trabalho. As pessoas passam a se solidarizar e apoiar", conta.

A iniciativa de Seabra revelou-se um sucesso no Museu Histórico, com o aumento das doações impulsionando a manutenção do espaço. Os recursos arrecadados possibilitaram a substituição de lâmpadas, o cuidado com os acervos e o pagamento do transporte de voluntários para casa. "A sobrevivência do museu depende do voluntariado. Não vejo essa responsabilidade nas mãos do governo estadual, municipal, federal ou de qualquer outra entidade. Ao longo de mais de 40 anos de funcionamento, poucas mudanças partiram dessas esferas. As maiores transformações no Museu Histórico foram lideradas pelos frequentadores, apaixonados pela cultura e arte, que se dedicaram incansavelmente para mantê-lo vivo. Meu objetivo é resgatar essa essência", reforça.

Em um momento de desabafo, o ex-diretor autointitulado do Museu Histórico do Crato revelou um sonho que alimenta há anos: ganhar na Mega Sena da Virada. Segundo ele, o desejo é simples, mas de grande importância: adquirir o edifício do Museu para revitalizá-lo. "Todos os anos, jogo na loteria com a esperança de ganhar e poder comprar o edifício do Museu para revitalizá-lo. Nada de reformas sofisticadas. Apenas manter e resgatar a arquitetura histórica. Eu só não quero ver a história de um município inteira se perder pela falta de interesse do governo municipal", desabafou.

Agora

Em março deste ano, o prédio centenário que abriga os Museus de Arte Vicente Leite e Histórico do Crato foi isolado pela Defesa Civil municipal devido aos danos causados por chuvas e quatro pés de embaúba crescendo na calha do telhado do museu. As raízes das árvores comprometeram uma parede do segundo pavimento. Após permanecer fechado por cinco anos, o edifício histórico enfrenta agora a ameaça iminente de desmoronamento.

Em nota oficial, a Secretaria Municipal de Cultura do Crato se pronunciou, informando que intervenções emergenciais foram realizadas para preservar a integridade estrutural do prédio após os danos causados pelas chuvas.

O comunicado destaca também que, antes mesmo dos eventos climáticos, a Administração Pública do Crato já havia elaborado um projeto visando a reforma e restauração do prédio histórico. No entanto, as licitações realizadas foram "abandonadas", em virtude da complexidade do processo e do tombamento do prédio, os certames foram desertos ou fracassaram.

A atual pasta da Cultura informou ainda, que todo o acervo histórico e cultural foi previamente retirado do prédio e encontra-se preservado em local apropriado, garantindo sua segurança e conservação.

Seabra diz que o desinteresse no museu por parte da prefeitura é crônico e parece ser passado de gestão para gestão. "Independentemente da orientação partidária, tanto governos de direita quanto de esquerda parecem negligenciar o museu. Quando o museu foi contemplado com o edital de modernização do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), nós iriamos receber R$ 260 mil reais, mas, exigia que a prefeitura desse R$ 40 mil. Porém, quando todos os trâmites estavam prontos para firmar o convênio, o prefeito da época se recusou a disponibilizar a contrapartida, perdendo-se assim a oportunidade de reforma. A atitude gerou críticas, e inclusive de um alto funcionário falou para mim na época: 'A prefeitura não tem interesse nesse museu. Devolva esse dinheiro para Brasília!'"

A reportagem entrou em contato com a prefeitura do Crato questionando a falta de investimentos e os motivos para os editais não irem para frente, mas não obteve resposta. O espaço está aberto para futuras manifestações.