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Apostador deixa de comprar remédio e pagar contas para gastar com bets

Consumidores vêm reduzindo ritmo de compras em outros segmentos | Foto: CM

"Às vezes penso em comprar uma pizza, mas está passando Argentina e Canadá na televisão, por exemplo. Aí prefiro apostar naquele jogo, para ver se ganho e, com esse dinheiro, comprar a pizza. Mas se não ganho, acabo ficando no arroz e feijão mesmo". O depoimento do universitário Osmar Neto, 20, ilustra um novo comportamento de consumo que ganha força no Brasil. Há casos em que apostadores já deixaram de comprar medicamentos e até pagar contas essenciais para 'jogar'.

Atraídos pelo dinheiro aparentemente fácil obtido por meio das apostas esportivas online, consumidores vêm reduzindo o ritmo de compras em outros segmentos, em especial de itens de vestuário, supermercados e viagens, de acordo com uma pesquisa da SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo).

O objetivo é encontrar no espaço no orçamento para gastar com as chamadas bets, um negócio que já movimenta R$ 110 bilhões ao ano no Brasil, com as casas de apostas faturando cerca de R$ 14 bilhões no ano, segundo dados da ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias).

Um relatório do banco Santander publicado em junho revela que a participação do varejo nos gastos das famílias caiu de um pico de 63% em 2021 para 57% em 2023. Ao mesmo tempo, as bets passaram de 0,8% da renda familiar em 2018 para algo entre 1,9% e 2,7% em 2023.

"Nós já vínhamos percebendo uma recuperação da renda do brasileiro no último ano, mas a retomada do consumo não acontecia no mesmo patamar", diz Ruben Couto, analista de varejo da área de pesquisa de ações do Santander.

"Em um primeiro momento, pensamos que o nível de endividamento do consumidor estaria freando os gastos. Mas o comprometimento da renda com dívidas também vem caindo. Daí começamos a prestar atenção a novos comportamentos de consumo, como as bets."

Quem é o apostador brasileiro de bets

A primeira empresa a comentar publicamente o deslocamento dos gastos para as apostas esportivas online foi o atacadista Assaí, em julho do ano passado. "Temos feito várias pesquisas que indicam que gastos novos entraram no bolso (...) O mercado de apostas esportivas aparece muito como algo que tira a renda do consumidor e, com isso, ele não tem conseguido retomar seus volumes de compra", disse o presidente do Assaí, Belmiro Gomes, durante a teleconferência de resultados do segundo trimestre de 2023.

Procurado pela Folha, o Assaí não atendeu até a publicação da reportagem, assim como o Grupo Pão de Açúcar e o Grupo Mateus. O Carrefour e a Renner não quiseram comentar. Já a C&A respondeu, por meio da sua assessoria de imprensa, que não identificou este movimento até agora.

A Abras (Associação Brasileira de Supermercados) também foi procurada, mas não retornou. Em abril, o presidente da associação, João Galassi, propôs ao Ministério da Fazenda a taxação das bets com o Imposto Seletivo -o chamado "imposto do pecado", que recai sobre itens prejudiciais à saúde e ao ambiente- na regulamentação da reforma tributária.

No início de julho, o grupo de trabalho que tratou do assunto na Câmara dos Deputados incluiu a cobrança do imposto sobre os jogos de azar e as bets no relatório da reforma, que foi aprovada no dia 10 e agora vai ao Senado. A regulamentação das empresas de apostas esportivas e jogos online, discutida desde o ano passado, começa a valer em 1º de janeiro de 2025. Até lá, as bets deverão pagar R$ 30 milhões à União para obter autorização de exploração comercial.

38% da população

Um levantamento da AGP Pesquisas a pedido da SBVC, realizado entre abril e maio deste ano, com 1.337 consumidores em todo o país, identificou que 38% da população faz apostas esportivas online. É um público predominantemente masculino (58%), da classe C (54%), jovem (44% têm entre 18 e 34 anos) e morador da região Sudeste (50%).

A maioria (51%) joga pelo menos uma vez por semana e 49% estão jogando mais hoje do que no ano passado. Quase dois terços dos entrevistados (64%) usam a renda principal para apostas. Destes, 63% disseram que já se sentiram prejudicados por serem usuários de bets.

Entre os jogadores, 23% deixaram de comprar roupas, 19% não adquiriram itens de supermercado, 19% não consumiram viagens, 15% deixaram de fazer refeições fora do lar, 14% não compraram itens de higiene e beleza, 11% não adquiriram medicamentos ou outros cuidados com a saúde e 11% não pagaram contas básicas como água, luz e gás -tudo em favor das apostas online.

'É pior do que droga'

"O tema bets é muito sério, não se trata de um fenômeno apenas brasileiro", diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese Retail. "É um negócio que vem escalando e é muito relevante. Drena a renda discricionária e acaba afetando até o consumo essencial, disputando recursos que iriam para diversos segmentos do varejo", diz ele, que também é conselheiro e vice-presidente da SBVC.

Serrentino destaca que as bets operam em um modelo de plataforma, como os marketplaces. "Elas conectam várias modalidades de jogos e criam a gamificação no universo de apostas, que sempre foi um negócio analógico", diz. Com isso, geram inúmeras formas de engajar o jogador, que fica "preso" ao sistema.

"Jogo é viciante, é pior do que droga", diz o metalúrgico Lucas Soares, 31. Casado e pai de dois filhos, ele decidiu parar de jogar quando percebeu que estava elevando demais o valor das apostas, chegando a R$ 200. "Era um dinheiro que iria atender as necessidades dos meus filhos, eu não podia fazer isso", conta ele, que acordava de madrugada para acompanhar os jogos e escondeu o vício da esposa. "Acabei me prejudicando no antigo emprego, estava sempre com o celular na mão."

Na opinião do metalúrgico, para quem é pobre, as apostas online representam uma ilusão de renda extra, em um momento em que todos estão endividados e que "está tudo caro".

"Você joga a primeira, ganha, joga a segunda, ganha, a terceira, a quarta, e depois você perde. Aí você quer recuperar o dinheiro que você perdeu e coloca mais dinheiro. Isso vai virando uma bola de neve. Aconteceu comigo", diz.

Informações de Daniele Madureira e Guilherme Bento (Folhapress)