Apesar de avanços nas últimas décadas, o Brasil ainda tem dificuldades para desenvolver e produzir suas próprias vacinas sem depender de fornecedores no exterior. O grande problema, segundo especialistas, é o "meio de campo" as etapas intermediárias do processo.
Embora já conte com uma comunidade científica capaz de conceber novos imunizantes e com uma rede de instituições que consegue avaliar a eficácia vacinal em grupos grandes de pacientes, o país continua patinando nos processos cruciais que existem entre essas duas pontas. Sem eles, não é possível demonstrar que o novo produto é promissor o suficiente para um ensaio clínico (ou seja, em humanos) de larga escala.
"Existe uma desconexão no Brasil, tanto por parte dos empresários que transformariam a vacina em produto quanto do governo, em relação ao potencial científico do país", resume a imunologista Cristina Bonorino, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. "Há um grande potencial nas duas pontas do processo, que se perde no caminho."
"Conforme a gente viu na pandemia, a autonomia na produção de vacinas tem uma importância estratégica. É algo que facilita o acesso a insumos que ajudam a controlar situações graves de saúde pública", pondera Flávio da Fonseca, virologista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador associado ao centro de biotecnologia CT-Vacinas.
Tanto Bonorino quanto Fonseca destacam a falta de um parque de testagem de toxicidade de vacinas no Brasil afinal, antes de testar a eficácia de um produto, é preciso verificar até que ponto ele pode ser tóxico.
Conforme a gente viu na pandemia, a autonomia na produção de vacinas tem uma importância estratégica. É algo que facilita o acesso a insumos que ajudam a controlar situações graves de saúde pública
virologista da UFMG e pesquisador associado ao centro de biotecnologia CT-Vacinas
"Nós também não temos acesso a estudos em primatas não humanos [em geral, macacos do Velho Mundo], que é algo que costuma subsidiar uma decisão mais rápida dos órgãos regulatórios sobre o sinal verde para estudos clínicos", diz o pesquisador da UFMG.
"Tentamos suprir isso com modelos experimentais em outras espécies, como camundongos, coelhos, às vezes cães. Mesmo no caso de ratos temos poucos centros, com agendas lotadas."
Outro gargalo importante, segundo ele, está ligado aos testes clínicos portanto, já em pessoas das chamadas fases 1 e 2. Nessas etapas, avalia-se a segurança de determinado produto e, caso ela seja comprovada, começa-se a analisar a eficácia dele.
"Mas isso depende do desenvolvimento de lotes clínicos de experimentação seguindo padrões de qualidade específicos", explica Fonseca. Porém, como a escala de fabricação é muito menor, é difícil encaixá-la em grandes fábricas seria necessário contar com instalações especializadas nisso.
"Você não consegue chegar numa empresa que tem o seu ciclo de produção totalmente ocupado e dizer: Preciso que você pare a sua produção para fabricar mil doses da minha vacina seguindo o padrão de boas práticas. A vacina da UFMG [contra Covid-19], que agora está em fase 2, está produzindo os lotes clínicos no exterior", exemplifica ele.
O infectologista Esper Kallás, diretor do Instituto Butantan e um dos responsáveis pelos testes da vacina contra a dengue desenvolvida pela instituição paulista, lembra que o desenvolvimento de vacinas costuma ser mais longo e mais complexo do que o de outros tipos de fármacos. "Poucos lugares do mundo têm o domínio completo de toda essa cadeia, e é comum uma participação forte de instituições públicas", explica ele.
Um caminho possível para facilitar o processo, segundo Kallás, seria investir no desenvolvimento de vacinas contra doenças cujos "correlatos de proteção" já são bem conhecidos. Trocando em miúdos, no caso dessas moléstias, os imunologistas já sabem, com razoável grau de precisão, que tipo de reação do sistema de defesa do organismo é necessária para neutralizar uma infecção. Caso um novo imunizante conseguisse produzir esse efeito em testes iniciais, seria possível simplificar o resto do processo, diz ele.
Por outro lado, Kallás diz não acreditar que a tecnologia das vacinas de mRNA, que teve sucesso considerável na criação de imunizantes contra o vírus da Covid-19, possa se tornar um atalho no caso de outras doenças. Essa era a esperança inicial, já que, em tese, bastaria contar com a informação genética do vírus causador de uma doença, por exemplo, e "traduzi-la" para as letras químicas de RNA, as quais, por sua vez, seriam "lidas" pelo organismo e deflagrariam a reação de defesa vacinal. Não seria mais necessário cultivar vírus atenuados (enfraquecidos) da doença, por exemplo.
"Mas, ao que parece, ela não induz uma imunidade longa se comparada à de outras vacinas. É claro que há muita gente trabalhando para tentar contornar isso, mas é algo que ainda não está resolvido, além da questão do custo dessa tecnologia", explica.
Para Cristina Bonorino, resolver os gargalos atuais exigirá uma estrutura mais descentralizada e ágil, com colaboração entre governos e empresas e capacidade de manter os pesquisadores mais talentosos no Brasil. "As empresas farmacêuticas brasileiras se acostumaram ao risco zero: vamos fabricar genéricos e deixar o dinheiro rendendo no banco a juros altos", diz. "É uma cultura que precisa mudar", concorda Fonseca.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.
Por Reinaldo José Lopes (Folhapress)