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Neiva Guedes: Uma vida dedicada a salvar as araras azuis

Neiva Guedes dedica a vida a preservar as araras azuis | Foto: Instituto Arara Azul/Divulgação

Por Pedro Sobreiro

O dia 5 de janeiro marca a celebração do Dia Mundial das Aves, data instituída em 1906 para celebrar e conscientizar as pessoas ao redor do mundo sobre a importância de preservar esses animais tão belos e fundamentais para a manutenção da vida na Terra.

E quando se fala em aves no Brasil, é preciso lembrar da Profª. Dra. Neiva Guedes. Presidente do Instituto Arara Azul e Coordenadora do Projeto Aves Urbanas - Araras na Cidade, a bióloga é referência mundial na preservação de aves, já que dedicou sua vida a estudar e ajudar a recuperar as populações das araras no Brasil, sendo uma das principais responsáveis por existirem araras azuis vivendo na natureza nos dias de hoje.

Seu trabalho é inspiração para gerações de cientistas e conservacionistas pelo mundo, e 'furou a bolha' científica a ponto de ter sido notada pela Mauricio de Sousa Produções, que a homenageou no projeto 'Donas da Rua', em 2020, que celebrava mulheres brasileiras extraordinárias e inspiradoras. Em entrevista exclusiva ao CORREIO DA MANHÃ, a Dra. Neiva Guedes comentou um pouco mais sobre essa homenagem e falou sobre o atual estado das araras azuis no Brasil e no mundo.

"Eu recebi essa homenagem do 'Donas da Rua' com muita alegria. Foi uma honra para mim. E a repercussão que essa personagem teve foi uma surpresa, porque se espalhou muito rapidamente! Mas foi muito legal. Primeiro porque eu sou fã do Maurício de Sousa. Meu personagem favorito é o Cebolinha. A Mônica, o Cascão e o Chico Bento também são incríveis, mas o Cebolinha é o meu predileto. E o legal disso tudo é assim que o nosso trabalho chegou até a criançada. Até hoje, seja no Brasil ou pela América do Sul, tem muitas crianças que remetem ao meu trabalho por conta do Maurício de Sousa, dessa bonequinha que ele criou. Em 2024, a Escola Estadual 26 De Agosto, em Campo Grande (MS), me convidou para ver a homenagem que prestaram. Eles deram o meu nome ao laboratório de ciências e fizeram uma pintura dessa personagem no laboratório. E eram alunos do ensino médio e fundamental. Eu achei aquilo tão lindo, a pintura ficou maravilhosa! Então, eu acho que essas ações têm um poder de difusão, de divulgação da ciência, que a gente nem consegue dimensionar. Foi muito bacana e importante. Eu me sinto muito feliz com essa homenagem", explicou a Doutora.

Um momento marcante de sua trajetória na luta pelas araras azuis foi em 2014, quando a espécie saiu da lista de animais ameaçados de extinção, segundo um documento realizado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na época. Com isso, ela passou a constar como 'vulnerável' na lista vermelha de espécies ameaçadas da International Union for Conservation of Nature (IUCN). Porém, com as recentes queimadas que vêm assolando as matas brasileiras, principalmente o Pantanal, o trabalho ficou ainda mais complexo.

"Na realidade, Pedro, eu não tinha nem me dado conta que já faziam 10 anos, mas a nossa avaliação dessa última década não é boa. Quando a arara azul foi retirada da lista de ameaçados de extinção, eu achei uma decisão um pouco precipitada, porque a população de araras que a gente trabalha ainda não estava autossuficiente. A gente ainda faz muitos manejos, trabalha muito para que a espécie tenha um sucesso reprodutivo melhor. Somado a isso, a gente teve grandes incêndios em 2019 e 2020. Entre 2021 e 2023, os incêndios não foram tão grande, mas o de 2024 foi arrasador. O efeito dos incêndios é muito drástico para as araras, que são animais especialistas. Há uma série de particularidades para desenvolver essa população, então o fogo acaba atrapalhando muito", disse.

"A gente vinha em uma crescente do grupo de araras do Pantanal e Cerrado. Eles estavam aumentando e expandindo. Quando vêm os incêndios, esse número cai vertiginosamente. Primeiro porque, na hora que o fogo passa, os locais de ninho são destruídos. O incêndio se espalha e vai queimando ninhos, árvores, caixas... Isso sem falar nos filhotes, que, muitas vezes, também podem queimar. Porém, os efeitos não são só na hora do fogo. Eles impactam por anos. Então, em 2019, quando o veio o primeiro incêndio na nossa área principal de estudo, que é o Refugio Ecológico Caiman (MS), que teve 60% da fazenda queimada, a gente foi contabilizar os nossos ninhos ativos depois dos incêndios, e registramos que 50% dos ninhos tinham sido afetados", explicou.

E para a Dra. Neiva, os incêndios trazem ameaças inesperadas, como ataques de predadores que perderam seus habitats e não encontram mais as espécies que costumavam predar.

"A gente monitora intensamente essa área do Refúgio. No primeiro incêndio de 2019, houve essa perda de 50% dos ninhos. Nos anos seguintes, além da baixa imunidade e do desenvolvimentos de lesões na pele das araras, a gente notou a presença de predadores, que também sobreviveram ao fogo e agora passavam fome. Eles começavam a atacar não só os filhotes, mas também araras adultas. A gente teve que inventar novas técnicas para evitar essa predação, e felizmente a gente conseguiu. Agora, nesse incêndio de 2024, a exceção reprodutiva não estava tão adiantada quanto em 2019, então só havia poucos ovos. Então, novamente perdemos ovos, perdemos caixas, mas não chegamos a perder filhotes. Porém, como queimou muito área de alimentação, para um bicho que é especialista, há um problema muito sério de sobrevivência. O que está acontecendo é que estamos precisando suplementar a alimentação das araras, buscando frutos em Campo Grande, mirando em outros locais que não foram queimados ainda e disponibilizando pra elas. Na maioria dos ninhos, a gente consegue proteger os ovos e filhotes, mas tem um gavião que ronda a área. Às vezes, ele não consegue pegar um filhote, mas ele estraçalha, o que machuca bastante. Para esses casos, a gente está fazendo um cuidado de UTI mesmo para esses bichos nos ninhos. Nossa equipe sobe duas, três vezes por dia nos ninhos para poder tentar recuperar os esses filhotes, para que os bichos consigam sobreviver e depois voar, então é uma luta diária", afirmou a Dra. Neiva Guedes.

Importância dos zoológicos

Nos últimos anos, há um debate que vem inflamando as redes sociais sobre a importância dos zoológicos e parques na conservação de espécies ameaçadas. Enquanto alguns se mostram contrários por trazerem animais fora da natureza, alguns especialistas defendem as instituições dada a carência de centros de reabilitação para os animais. Para a Dra. Neiva Guedes, os zoológicos podem ser muito importantes, contanto que tenham o compromisso com o bem-estar animal.

"Eu vejo alguns zoológicos, hoje, com essa nova característica que é se aliar à conservação. Há ambientes muito mais amplos, tentando dar melhor qualidade de vida pros animais nesses locais. Então, esses zoológicos mais atuais eu vejo com muito bons olhos, porque há muita gente que não tem a oportunidade de ver esses bichos na natureza. No Zoo, ela tem a oportunidade de pelo menos conhecer, e aí você pode usar isso para espalhar a importância da conservação, para promover e tornar acessível a educação ambiental. Mas tem que ser em zoológicos que tragam esse conceito de conservação, de prezar pelo conforto do animal", comentou.

"Foi por isso que eu fui ao Zoológico de São Paulo na inauguração do recinto das ararinhas azuis, porque a gente quer estar junto, sim, nessa nova caminhada deles. A gente quer apoiá-los, porque é muito importante. É o maior zoológico da América do Sul, então é importante que a gente tenha essas mudanças e iniciativas que podem até influenciar outros zoológicos a se atualizarem. E o tanto de gente que pode conhecer as ararinhas azuis e saber a importância não só das araras, mas de vários outros animais ameaçados do Brasil e do mundo", completou.

A Dra. Neiva Guedes ressaltou também o apoio de instituições internacionais na preservação das araras azuis.

"A gente também tem o apoio de outros zoológicos. Por exemplo, o Zoo de Zurique, na Suíça. Já faz anos que eles nos apoiam, e estão construindo por lá uma réplica do bioma Pantanal. Só que para eles fazerem essa réplica do bioma, eles primeiro começaram a conservar e estudar na natureza, nos apoiando nos trabalhos de conservação. Então isso é muito bom, é sempre bem vindo. Sobre o espaço, ele tem mais de mil hectares, um recinto gigante! É uma réplica do Pantanal, e eles vão ter araras lá. Antes de começar esse trabalho, eles nos contactaram para nos ajudar. Eles querem que as araras estejam vivas na natureza, para que as pessoas que vejam as araras na Suíça possam vier ver elas aqui. Vai ser bem legal", explicou.

Tráfico internacional

Parte do problema que ajudou a quase extinguir as araras azuis no século passado foi o tráfico ilegal. O tráfico de animais silvestres só perde para o de narcóticos e o de armas no mundo, sendo o Brasil responsável por 15% desse contrabando de animais, segundo dados da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas). Infelizmente, esse fascínio humano pelas aves não tem reduzido.

"Essa é uma questão antiga. As araras estão aqui antes de nós, bem antes, tanto que os povos primitivos já faziam desenhos das araras nas cavernas. Quando os portugueses chegaram aqui, já tinham as araras como as conhecemos. Então, o desejo por esses bichos, que são coloridos e muito carismáticos, é enorme. A arara azul é uma das aves mais traficadas do mundo, o que, inclusive, levou essa ave a lista de ameaçada de extinção. Infelizmente, é uma luta constante que fazemos",

Neiva também chamou atenção para uma nova categoria do tráfico internacional que vem atrapalhando ainda mais o trabalho de preservação: o roubo de ovos.

"Na realidade, nos últimos dois ou três anos, eu posso dizer que a gente tem sentido um aumento grande de tráfico. Inclusive, agora o principal alvos não são nem mais as araras adultas, mas dos ovos. Os bandidos assaltam ninhos e levam dezenas de ovos. Tivemos, em 2023, no aeroporto de Guarulhos, três apreensões com a média de 60 ovos, cada. Não só de ovos de araras azuis, mas também de tucanos, araras vermelhas e outras espécies. Em 2024, tivemos mais duas grandes apreensões", alertou.

"Pelo mundo, tem uma classe de novos ricos, principalmente na Índia e no Oriente Médio, que estão com grande demanda pela nossa fauna em geral, que é muito bela. Então, os bandidos estão se especializando cada vez mais. É um tráfico muito específico. Eles mapeiam regiões e sabem onde encontrar e exatamente o que pegar. É muito preocupante", concluiu.

Astro de Hollywood

A década passada trouxe a questão das araras azuis para os olhos de todo o mundo, principalmente com o sucesso da franquia hollywoodiana 'Rio', o longa de animação que conta a história das duas últimas ararinhas azuis da espécie, que são traficadas no Rio de Janeiro, mas acabam conseguindo escapar e salvam a espécie. Para Neiva, o filme foi importante na conscientização do público internacional.

"A ideia dos filmes do Carlos Saldanha [diretor da saga] era não só no 1 mas também em 'Rio 2', evitar o tráfico internacional de aves e, ao mesmo tempo, reforçar para o mundo que esse é um problema muito grande. Eu acho que os filmes despertaram muito esse interesse em conhecer mais da espécie, principalmente em pessoas que não eram muito ligadas na causa. Virou tema de festa de criança, sabe? Foi importante.

Turismo e conservação

Em 2024, a Embratur se inspirou na fauna brasileira para criar brindes brasileiros para serem distribuídos em eventos internacionais, se apoiando na beleza da fauna local para incentivar o ecoturismo e conservação. E uma das espécies "embaixadoras" foi justamente a arara azul, as outras foram a onça-pintada e o mico-leão-dourado.

Para a Dra. Neiva Guedes, essa ação é importante porque não apenas promove o país por suas belezas naturais, mas também atrai investimentos para ajudar na preservação desses animais.

"A gente esteve junto com o Ministério de Turismo em Paris, nas Olimpíadas, e eles estruturaram as ativações da Casa Brasil com toda a informação científica necessária. O Instituto Arara Azul transformou os tecnicismos em uma linguagem diferenciada para que eles pudessem divulgar. E foi muito legal, porque fizeram todo um trabalho de layout, inclusive réplica de caixas ninhos artificiais, pra quem estivesse lá e quisesse colaborar, tivesse informações de como apadrinhar e ajudar nosso trabalho de conservação. Então, eu acho que o Brasil está abrindo os olhos para questão ambiental em todos os setores. A preservação não é só uma questão ambiental, ela é social e cultural. E divulgando, levando informações da nossa rica biodiversidade lá para fora, melhor. Quanto mais as pessoas conhecem e entendem, mais elas ajudam. Mais elas vão ajudar a conservar o seu ambiente", completou.

No mês das aves, pessoas como a Dra. Neiva Guedes mostram que há esperança para um Brasil melhor e ambientalmente correto. Basta um esforço coletivo para descartar lixo corretamente, parar com a poluição de rios e mares, e acima de tudo dar fim a práticas antiquadas, como o incêndio de pastos e o desmatamento ilegal. É possível salvar a biodiversidade brasileira, e projetos como os do Instituto Arara Azul são a prova viva. Quem quiser saber mais sobre as atividades e como apoiar o instituto Arara Azul, basta acessar o site www.institutoararaazul.org.br e acessar todas as informações.