Por Ana Luiza Rossi
Contar testemunho serve para inspirar, dar exemplo de vida e impedir que a história se repita. Mas antes de virar voz e ecoar, pode machucar, ferir e até matar. Assim ocorre com guerreiras, que têm um dia especial em sua comemoração, o 8 de março: o Dia Internacional da Mulher. A data, que celebra as conquistas femininas ao longo dos últimos séculos, também deixa gravado na memória a luta das mulheres por igualdade de direitos, combate à violência de gênero e, sobretudo, a construção de uma sociedade mais justa.
Em Volta Redonda, no interior do Estado do Rio, uma dessas histórias tem nome: Liliana Siqueira Lemos. Aos 44 anos, ela carrega em sua trajetória marcas de dor, coragem e resistência. Criada pelos avós, no bairro Santa Rita do Zarur, viveu a violência como rotina. O avô agredia a avó, Liliana e o tio, que tinha deficiência intelectual. A violência era tão presente que, segundo Liliana, tornou-se uma normalidade. "Minha avó transferia todo esse ódio para mim", recordou.
Aos 14 anos, Liliana descobriu que estava grávida. Só soube da gestação já no sexto mês. O choque foi seguido de agressões da própria avó e ela precisou ser levada ao hospital. Aos 15, virou mãe pela primeira vez. Sozinha e sem suporte do pai da criança, que limitou-se a apenas registrar a filha. Teve ainda que cuidar da avó - na época já doente e acamada -, do tio e do bebê.
Com a morte da avó, Liliana foi expulsa de casa pelo avô. Passou a morar em um barraco. no mesmo quintal, com apenas duas paredes e parte de um telhado. Dormia em uma esteira, ao lado do tio, e muitas vezes não tinha o que comer. "Ninguém queria ajudar, eu não tinha com quem contar", relatou.
Marcas da violência
Foi nesse período, que conheceu um homem 18 anos mais velho. Um amigo da família, afirma Liliana. "Ele ofereceu para a gente se juntar, disse que me sustentaria", lembrou. Mas o que parecia uma saída virou mais um capítulo de sofrimento: o homem era alcóolatra e, quando bebia, ficava agressivo. Com ele, Liliana teve outros cinco filhos. "Ele também cresceu em um lar violento e se tornou o reflexo da criação que teve", explicou.
Sem apoio familiar e condições de deixar os filhos com alguém, Liliana passou os anos aceitando a realidade imposta. "A gente aceita o que a vida nos propõe. Passava fome, tentava pedir ajuda, mas era muito humilhada", relembrou. Para ajudar na renda familiar, trabalhou como garçonete em outras cidades. Acordava às 6h e voltava tarde, deixando a filha mais velha, com apenas 10 anos, cuidando dos irmãos, para ter uma renda de apenas R$ 80 reais.
- Denunciaram [ao Conselho Tutelar] que eu estava me prostituindo, usando drogas. Mas eu só estava trabalhando - lamentou. O Conselho Tutelar foi acionado, e seus seis filhos foram levados para um abrigo. "Eu não tinha para onde correr. Levei meus filhos dentro do carro do Conselho entregar eles para o abrigo. Foi muito dolorido. Você não está fazendo nada de errado, mas tive que ver meus filhos ir embora chorando. Não pude fazer nada".
'Era um anjo, virou um demônio'
Separada do primeiro marido, conheceu o pai de seus dois filhos mais novos. A relação, iniciada de forma tranquila, logo foi marcada por violência extrema. "Ele chegou a colocar fogo na nossa casa. Uma vez ele bateu em mim com um bebê no colo e quebrou meu dente da frente", afirma. Por fim, decidiu se separar.
Decidida a recuperar a guarda dos filhos, Liliana batalhou. "Ia quase todos os dias ao Ministério Público de Volta Redonda a pé". Conseguiu provar que as denúncias contra ela eram falsas e resgatou seus outros seis filhos. Mesmo assim, o segundo marido continuou a persegui-la, alugando uma casa próxima a dela, invadindo o lar e a ameaçando, até mesmo com faca.
- Uma vez fui em um posto de gasolina, estava grávida e com neném do colo, ele me deu uma verdadeira surra. Ninguém me ajudou, ficaram apenas olhando. Foi uma cena que não esqueço - disse.
Tentando seguir adiante, conseguiu trabalhar como empregada doméstica, também em supermercado e outros extras que a ajudaram a sustentar sua casa. A luta, porém, está longe do fim. Para o Dia Internacional da Mulher, Liliana reforça: "Todas as mães precisam ensinar suas filhas a não aceitarem violência. Amor não é dor. Se a pessoa te bate, te maltrata, larga. Um tapa pode ser o caminho para a morte", reforça.
Atualmente, Liliana mora em uma ocupação de terra de Volta Redonda, batizada de Dom Waldyr, um bispo falecido em 2013 e conhecido justamente por lutar pela igualdade social e direitos humanos.