Newton Vieira é o presidente do movimento salve o Rio Melchior. Atua ativamente na proteção do rio desde 2018, que fica entre as regiões administrativas de Ceilândia, Sol Nascente e Samambaia. Ele conta que, no final da década da década de 1880 até o início dos anos 1990, ia lá com frequência acompanhado de sua família para um dia de banho. Era uma opção de lazer para vários residentes do entorno. Newton destaca como a memória afetiva com as águas do rio o impulsionou a lutar por ele.
“Não só nós, mas muitas famílias faziam churrascos e piqueniques lá perto. Aqui no entorno existem poucas opções de lazer, e o Melchior era um refúgio”.
Esperança
Hoje, já não é mais possível tomar banho lá. O rio que se encontra mega poluído não é adequado para contato humano. O local que era ponto de paz para famílias, hoje é reserva de esgoto e chorume que está sendo explorado por empresas.
O Rio encontra-se na classe 4 de poluição. Isso significa que o rio pode, pela legislação, receber efluentes poluentes, desde que dentro de parâmetros estabelecidos. Mas Vieira denuncia que ninguém o fiscaliza com eficácia, e que o rio é cada vez mais explorado e machucado.
Vieira ainda tem esperanças de que é possível recuperá-lo, pelo menos parcialmente. Essa esperança é que o levou, entre 2024 e 2025, a posar com cartazes na frente da Câmara Legislativa do DF por 22 semanas consecutivas. Finalmente, alguém o notou. Dialogou com os deputados distritais. E uma CPI foi proposta pela deputada Paula Belmonte (Cidadania) para investigar o excesso de poluentes do Rio.
“O Rio Melchior não está morto. Ouvi de um especialista que ele pode ser comparado a um paciente de UTI. Então, ele pode voltar a viver", avalia.
Comunidade da Cerâmica
Às margens do rio, a poucos quilômetros, existem moradores. A Comunidade da Cerâmica está instalada no local desde 1970. A origem do nome vem de uma fábrica de cerâmica que funcionava ali. Os profissionais da fábrica começaram a montar suas casas próximas ao trabalho. A fábrica fechou, mas a comunidade ficou. Atualmente, o local abriga cerca de 160 famílias rurais.
Laura Pereira tem 71 anos. Conta que chegou lá na comunidade há 25 anos. Mora em uma chácara com toda a sua família, com 13 pessoas. Nunca trabalhou na fábrica, mas seus vizinhos, sim.
Quando por lá chegou, Laura afirma que o rio já estava bem poluído. Mas, com o passar dos anos, a situação piorou. “Só moramos aqui porque não tem opção. O cheiro é horroroso. Quando venta então.... pior ainda. O cheiro entra em todas as casas”.
Laura está preocupada com a sua família. Com frequência as pessoas de sua família, principalmente as crianças, aparecem com brotoejas. Ela disse que não sabe se a doença está vindo do rio ou do solo, mas ressalta que as pessoas que moram ali estão ficando constantemente doentes.
“Em época de eleição os deputados vêm aqui demonstrar solidariedade conosco. Mas quando passa, ficamos aqui abandonados com todo esse chorume. Precisamos de alguém que olhe por nós”, critica.
Poluição
O rio, segundo dados da Caesb, recebe esgoto de quase 50% da população do Distrito Federal, equivalente a 1,4 milhões de pessoas. Esse esgoto, diz a Caesb, é lançado nas águas, mas, segundo a empresa, dentro das normas da resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que permite o lançamento de efluentes em rios de classe 4. A Caesb ressalta que, além do lançamento dos efluentes dos esgotos, as águas também recebe lixos do Aterro Sanitário e de uma empresa de abatedouro de aves.
A Caesb afirma que monitora sistematicamente tanto a qualidade dos esgotos tratados, quanto a qualidade do rio nos pontos de amostragem das estações de esgoto. Os resultados das análises, segundo o órgão, indicam que a qualidade da água está em acordo com os níveis estabelecidos no enquadramento do rio.
Obras
À reportagem, a Caesb anuncia que está implementando uma unidade de tratamento avançado na estação de tratamento de efluentes do rio.
“Visamos ampliar todo o sistema de tratamento Melchior, queremos o crescimento populacional de toda a bacia ao longo dos anos. Estão previstos investimentos da ordem de R$ 240 milhões, com recursos provenientes do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Agências de Bacias, Governo do Distrito Federal e recursos próprios da Caesb. O projeto está em fase de elaboração. Os recursos serão disponibilizados ao longo de 5 anos, durante a implantação das obras, afirma.
CPI
Em entrevista ao Correio da Manhã, a presidente da Comissão, Paula Belmonte (Cidadania) explica o processo de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o excesso de poluição do rio. A primeira reunião ordinária foi no dia 3 de abril, e há programação para uma nova sessão na quinta-feira (10). Após esse período, as reuniões irão ocorrer quinzenalmente.
Belmonte conta que desde 2019, quando era deputada federal, acompanha as demandas do Rio Melchior. Foi pessoalmente até o local entender a problemática e o nível de poluição do rio, quando despertou preocupação. Segundo a deputada, ela pagou um estudo para averiguar a situação do rio. Foi concluído que as águas estão com um nível de poluição mais aflorado. “O rio está morrendo”, diz a deputada.
Segundo Paula Belmonte, a CPI tem um escopo prévio a ser seguido com pontos de apuração. É composta de um presidente para conduzir as reuniões, no caso ela; um relator responsável por conduzir as diligências e investigações, o deputado Daniel Donizet (MDB); outros parlamentares integrantes, e uma assessoria jurídica para auxiliar no processo investigativo. Durante o processo, a CPI pode convocar testemunhas, pedir depoimentos, quebrar sigilos e realizar vistorias.
“No fim da CPI, o relatório final pode indicar indiciamento e outras medidas, como o envio das conclusões ao Ministério Público, indicando possíveis crimes para investigação judicial”, explica.
Há uma grande preocupação com os moradores á margem do rio. “Nós vimos as crianças e idosos doentes. A gente vai olhar a questão ambiental, mas também vamos averiguar a situação de saúde”. Paula Belmonte ressalta que, para além dos efluentes da SLU e da Caesb, outras empresas estão jogando resíduos sólidos no rio. “Tivemos a denúncia de que estavam jogando resíduos sólidos diretamente no rio. Não faremos só a análise hídrica, mas do solo também”, ressalta.
Termelétrica
Diante de toda essa situação, a construção de uma termelétrica que despejará seus resíduos em um rio já tão poluído não é uma boa notícia. Paula Belmonte confirma que a possibilidade da exploração do rio por uma usina termelétrica, que está em processo de licenciamento, passou a fazer parte do escopo da CPI. A comissão vai pleitear a transparência do processo, que a comunidade seja ouvida e, em especial, vai averiguar os malefícios que a elevação da temperatura das águas pode causar. Os resíduos da termelétrica vão elevar a temperatura da água, e a água quente permite uma maior proliferação de bactérias.
“Essa é nossa preocupação e vamos olhar tudo com muita responsabilidade. Eles vão captar uma quantidade de água para resfriar as caldeiras e devolvê-la mais quente. Isso nos preocupa”, afirma. “Quero deixar claro que não podemos deixar o rio Melchior morrer, e está é a nossa bandeira "continua.
Termo Norte
A empresa interessada na construção da termelétrica é a Termo Norte, de propriedade de Carlos Suárez. Em note, a Termo Norte afirma que está trabalhando com as melhores tecnologias do país para mitigar os impactos ambientais. Segundo a empresa, este modelo de usina irá captar menos águas que os outros já existentes.
"A água é captada em volume reduzido (110 m³/h), com retorno de 104 m³/h, que será tratada e devolvida para o Rio com qualidade superior à captada”, diz a empresa.
Porém, as outorgas emitidas pela Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) para que as águas do rio sejam utilizadas pelo empreendimento da termelétrica já são objeto de disputa judicial.
O instituto Arayara protocolou uma Ação Civil Pública questionando a emissão das permissões. Na peça, o instituto alega que os estudos utilizados pelo órgão para a permissão estão desatualizados, pois são de 2012.
À reportagem, em nota, a Adasa afirma estar agindo dentro dos trâmites legais e destacou que são outorgas prévias, sem caráter definitivo.
O Ministério Público do DF se manifestou no processo e ressaltou que a emissão das outorgas e o licenciamento ambiental de uma termelétrica pode ter impactos ambientais interestaduais e repercutir em diversos corpos hídricos.
Ainda há vida
Em entrevista ao Correio da Manhã, o professor José Francisco Gonçalves Júnior, do Departamento de Ecologia, Instituto de Ciências Biológicas da UnB, explica os resultados do relatório técnico da qualidade das águas do Rio Melchior, realizado pelos pesquisadores da instituição.
Para ele, a legislação permite que a classe 4 funcione como uma licença para a poluição, de forma desordenada e sem limite.
“A água passa a servir só para ser poluída e nada mais. É importante pensar que, mesmo na classe 4, alguns compostos químicos não são analisados e a Caesb não faz o monitoramento ideal”, afirma em contraponto ao que a Caeb disse à reportagem.
Segundo o professora, a pesquisa comprovou que a água do Rio Melchior tem diversos componentes químicos perigosos. Que deságuam no Rio Descoberto e Corumbá 4. Para o especialista, se a situação não mudar, a poluição, que funciona de forma cumulativa, também vai chegar lá.
José Francisco, porém, afirma que a situação é reversível, antes que se torne um “Tietê brasiliense”, numa referência ao poluidíssimo rio que cruza a cidade de São Paulo.
“A vantagens dos rios é que eles têm uma especificidade chamada autodepuração. Esse fenômeno permite que o rio se recupere, mas para isso, é preciso recuperar as suas condições originárias e do solo ao seu redor. O Rio Melchior não morreu, imagine-o como um paciente de UTI. O que é preciso? Um monitoramento intenso e cuidados. Ainda há esperança de vida para o Rio Melchior".