Expedição ao planeta Herzog
Cinemateca Alemã, em Berlim, remora os feitos do diretor de 'Fitzcarraldo' com desenhos, objetos, textos e fotos raríssimas
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Empenhado hoje em retirar do papel um documentário sobre uma fábrica da Ford na selva Amazônica, terreno que instiga sua imaginação desde "Aguirre, A Cólera dos Deuses" (1972), o alemão Werner Herzog sempre foi um artista discreto, mais interessado em poemas do que em holofotes. "Eu me preparo para fazer meus filmes lendo poesia dos século XIX, não vendo os longas que estreiam hoje em dia", disse em Cannes, em 2019, numa entrevista sobre um processo criativo que se confunde com uma aventura insalubre (para ele e para suas câmeras) a cada novo projeto, vide seu interesse autoral em registrar a loucura em espaços geográficos nem sempre seguros.
Algumas dessas aventuras, dessa sua geografia de risco, dessa poética singular alimentam a exposição aberta ao público que passar pela Deutsche Kinemathek, a cinemateca da Alemanha, em Berlim, daqui até o dia 8 de maio. Não é uma retrospectiva de seus longas, que estão à venda, em DVD e Blu-Ray, na livraria do evento, e, sim, de uma coleção de desenhos, objetos e, sobretudo, fotos que mapeiam toda a trajetória dele pelas telas, com destaque para sua passagem por Manaus, nas filmagens do cult "Fitzcarraldo", pelo qual recebeu a láurea de Melhor Direção no Festival de Cannes, em 1982.
Retratos de Claudia Cardinale e de seu ator fetiche, Klaus Kinski (1926-1991) estampam as paredes do chamado Museu do Filme berlinense. Tem até um rato empalhado (ou talvez seja um boneco, ninguém da curadoria confirma) que acompanhou Kinski em suas noites como vampiro na versão que Herzog fez de "Nosferatu", de Murnau, à sua maneira autoralíssima, em 1979.
"Eu já consegui extrair de atores como Nicolas Cage atuações bem-humoradas que te fazem sentir diante de uma comédia com Eddie Murphy, aquelas boas, hilárias, dos anos 1980, mas já consegui fazer com que pessoas sem qualquer experiência teatral se abrissem para a atuação, só focando no que a condição humana tem de mais simples, de mais corriqueiro. É preciso saber observar a Natureza. Os espetáculos todos brotam da Natureza", explicou Herzog em Cannes, há quatro anos, ao lançar "Uma História de Família", uma de suas raras ficções nas últimas duas décadas.
Foi com o documentário "O Homem-Urso" (2005) que Herzog se reinventou para as tecnologias digitais de captação e para o estrelato, abrindo conversações com uma nova geração de cinéfilos. Há, ainda, uma geração mais nova ainda que essa que aprendeu quem ele é - e passou a admirá-lo - depois de vê-lo atuando, na caça ao Baby Yoda na série "O Mandaloriano", da Disney . Há fotos dele no set do universo "Star Wars", ao lado do diretor Jon Favreau. Seu colega de cena, Carl Weathers (o Apollo da franquia "Rocky"), fala sobre ele num vídeo exibido na Deutsche Kinemathek, explicando o que aprendeu contracenando com o diretor, nas peripécias do bebê Yoda. Há depoimentos da cineasta Cloé Zhao e do diretor Wim Wenders, que aparece numa das fotos ao lado de Herzog e do também realizador Volker Schlöndorff. Os três formaram com Rainer Werner Fassbinder e Margarethe von Trotta a nata do Novo Cinema Alemão.
"Num momento que ninguém me queria, a Quinzena dos Realizadores de Cannes aceitava as experiências que eu fazia em lugares longínquos, entre rios, vulcões e cordilheiras", disse o diretor, ao ser laureado com o troféu Honorário Carroça de Ouro, em 2017.
Instalações em vídeos com imagens rodadas por ele em grutas, na mata densa ou em meio a erupções marcam a exposição alemã, assim como uma mesa com objetos exóticos colhidos ou inventados por ele, de pontas de flecha a crânios. "Tenho interesse pelos limites da lucidez que uma pessoa pode cruzar em sua criação", disse Herzog em Berlim. "A loucura vira estética quando alimenta potências".