Retratos de afeto
Reconhecido entre os colegas europeus por sua elegância, o crítico português José Vieira Mendes retrata seu bairro natal em exposição de fotos
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Mais elegante dos agitadores culturais do audiovisual português com uma respeitada carreira na cobertura jornalística dos grandes eventos cinematográficos do mundo, o crítico José Vieira Mendes desliza seu olhar das telonas para o obturador de sua máquina fotográfica - e mesmo pro visor touch screen de seu celular - com a mesma inquietação com passa de um longa do iraniano Jafar Panahi ao experimentos narrativos do alemão Cristian Petzold. Em Cannes, ele gravita entre uma projeção da italiana Alice Rohrwacher a um lançamento da americana Kelly Reichardt com a mesma vontade de potência e desejo de alumbramento. À inquietude ele sempre deu contornos poéticos. Basta ler suas resenhas dos concorrentes ao Urso de Ouro de Berlim, na revista eletrônica Magazine HD (https://www.magazine-hd.com/apps/wp/), para degustar de uma das melhores prosas da imprensa lusitana, perfumando advérbios e adjetivos com o cheirinho de alecrim.
Mas essa poesia que ele arranca da escrita se faz notar também em seu trabalho como fotógrafo. Basta conferir os painéis antropológicos que ele construiu ao clicar o dia a dia do Marcado de Campo de Ourique, em Lisboa. Onde vê-los? Presencialmente: basta visitar a Biblioteca /Espaço Cultural Cinema Europa, R. Francisco Metrass 28, de 6 a 29 abril, onde estarão 30 fotografias em formato 30x30, organizadas sob o nome Mercado, em referência a seu objeto de registro e reinvenção lúdica. Remotamente: o Correio da Manhã traz aqui algumas imagens, escolhidas pelo próprio Vieira Mendes.
"Comecei a fotografar quase ao mesmo tempo que comecei a ver cinema. Diz-se que um crítico é um realizador frustrado e eu sou um bocadinho, confesso! Embora, entretanto, já tenha realizado alguns documentários como, por exemplo, 'Concentrados - O Depósito de Concentrados Alemães na Ilha Terceira (1916-1919)', onde a fotografia está muito presente. Digamos que há uma influência ou uma interligação entre as minhas fotografias, o cinema que vejo, aprecio e comento, e, também os meus documentários. Há de facto muito cinema nas minhas fotografias também porque elas são quase sempre um registo onde se realçam, sobretudo, as pessoas, as suas acções, e os seus gestos, como nos filmes", explica Vieira Mendes. "Registram-se também as formas os alimentos, o edifício de estilo modernista".
Preparando-se para a inauguração da exposição, Vieira Mendes explica que ela vai atravessar dois momentos importantes da História em Portugal: os aniversários da criação do Biblioteca Espaço Cultural Europa, a 23 de abril, e o aniversário da Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974. "Adoro viajar e adoro partir, como todos os portugueses. Mas é tão bom regressar! É a tal saudade...esse sentimento bem português que não se mata, mas, de que antes se desfruta. Nasci em Lisboa e sou um apaixonado por Lisboa, onde me sinto em segurança e em casa, depois das minhas viagens e das 'maratonas' que são os festivais de cinema ou as reportagens", explica o crítico.
Em seu currículo, Vieira Mendes estampa um trabalho primoroso de editor na versão ibérica da revista "Première", na qual formou legiões de cinéfilos e até críticos, influenciando até o jornalismo cinematográfico brasileiro com o lirismo de seu olhar. Esse lirismo está na maneira como clica as paredes do mercado de Campo de Ourique e suas prateleiras regadas a iguarias.
"Amo a cidade de Lisboa, a luz, as pessoas, a relação com o Rio Tejo e os bairros que têm uma vivência própria, em particular aqueles que conheço melhor: Campolide, onde nasci, e Campo de Ourique, onde vivo há 30 anos. Eles ficam mesmo ao lado um do outro. Sou um privilegiado! Quase sempre, deambulo a pé pela cidade, muitas vezes bem cedo, numa forma também de fazer algum exercício físico e limpeza mental. Mas o faço com a câmera fotográfica ou mesmo com o Iphone e procuro aproximar-me cada vez mais do quotidiano, das vivências, da luz da cidade, que vai variando ao longo do dia e das estações do ano. Aprisiono-as em imagens a preto e branco ou a cores, captando uma Lisboa que está permanentemente a mudar. É um prazer enorme ver como alguns lugares mudam com a luz, com as pessoas, com os edifícios...mas mantendo ao mesmo tempo um certo ar característico, desta Lisboa que eu amo, similar à do filme do Alan Tanner, 'Na Cidade Branca', de 1983. Esta é uma exposição em particular, debruçada sobre o velho Mercado de Campo de Ourique, que agora se modernizou, e que combina as antigas vendas de alimentos com uma diversidade de restaurantes gourmet".
Somadas, as fotos clicadas por Vieira Mendes formam um micro curso visual de geografia.
"Estamos falando de um bairro bastante mais intimista e menos turístico do que outros da cidade. Mantêm um certo espírito do passado, embora já tenha sido descoberto por alguns turistas, até porque, a Casa Fernando Pessoa e o terminal do famoso Eléctrico 28, o bondinho, fica nos Prazeres, ou seja, ambos muito perto", explica o artista visual. "Essas fotografias curiosamente, foram realizadas no Mercado de Campo de Ourique, em 2019, ou seja, antes da pandemia de Covid-19. Entretanto o espaço já sofreu algumas alterações".