Por: Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Eu sei que vou te amar, Fernanda Torres

Fernanda Torres ganha o Globo de Ouro na categoria melhor atriz de drama | Foto: Instagram @fernandatorresoficial

Passados 39 anos de sua vitória no Festival de Cannes por “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986), a carioca Fernanda Torres conquista outro prêmio internacional badalado de Melhor Atriz, desta vez o Globo de Ouro. Sua atuação foi premiada em Beverly Hills (Califórnia), no domingo, o que amplia a popularidade mundial do maior sucesso nacional de bilheteria desde a pandemia: “Ainda Estou Aqui”. Estima-se que até o próximo dia 17, quando saem as indicações ao Oscar, a plateia pagante do longa-metragem de Walter Salles (estimada em 3 milhões até o réveillon) espiche... e bem. Quem vê Fernanda recriar as batalhas da advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018) na fita sai do cinema tocado (e pede bis).

Protagonista de marcos do nosso teatro (“A Casa dos Budas Ditosos”) e de nossa TV (“Os Normais” e "Tapas e Beijos"), bem-sucedida ainda na prosa, em romances (“Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”), ela vem sendo elogiada em todos os festivais por onde a saga de Eunice passou, a começar pelo de Veneza, onde o roteiro de Heitor Lorega e Murilo Hauser foi premiado, em setembro. Depois, o longa brilhou em projeções em San Sebastián, Nova York, Toronto e Marrakech, além da Mostra de São Paulo, onde ganhou o Prêmio de Júri Popular. No sábado, a Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ) elegeu a narrativa de Salles para o pódio do Top Ten de 2024, elegendo-o como seu Filme do Ano.

Diante da concorrência que teve no certame da Golden Globe Foundation, Fernanda provou o quanto impressionou miradas da Meca do cinemão com seu modo de atuar. Suas rivais foram Pamela Anderson (nomeada por “The Last Showgirl”); Angelina Jolie (“Maria”); Nicole Kidman (“Babygirl”); Tilda Swinton (“O Quarto Ao Lado”) e Kate Winslet (“Lee”). Quem entregou sua láurea foi a oscarizada Viola Davis, de “A Mulher Rei” (2022), que ganhou o prêmio honorário Cecil B. DeMille por sua dedicação à causa antirracista e à peleja pela equidade profissional de gêneros no audiovisual. Fernanda foi tomada de assalto quando foi convocada pela colega.

“Meu Deus, eu não preparei nada, porque eu não sei se eu estava pronta. Foi um ano incrível para os desempenhos de atrizes. Tantas atrizes aqui que eu admiro tanto. E, claro, eu quero agradecer ao Walter Salles, meu parceiro, meu amigo. Que história, Walter! E, é claro, eu quero dedicar esse prêmio à minha mãe. Vocês não têm ideia: ela estava aqui há 25 anos, e isso é uma prova que a arte dura na vida, até durante momentos difíceis pelos quais a Eunice Paiva passou. Com tanto problema hoje em dia no mundo, tanto medo, esse é um filme que nos ajudou a pensar em como sobreviver em tempos como esses”, disse Torres, ao evocar o legado de Fernanda Montenegro, com quem divide o papel de Eunice.

Macaque in the trees
Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva, não conteve a emoção ao abraçar a premiada amiga Fernanda Torres, a Eunice Paiva de 'Ainda Estou Aqui' | Foto: Instagram @seltonmello

Logo depois de ela falar de Fernandona, o hotel Beverly Hilton, sede da cerimônia, aplaudiu as conquistas dos longas “Emilia Perez” (França) e “O Brutalista” (EUA), escolhidos como Melhor Filme nos fronts Comédia/ Musical e Drama, respectivamente. O representante francês, com a assinatura autoral do cineasta Jacques Audiard (de “Ferrugem e Osso” e “O Profeta”), tirou de Salles o Globo de Melhor Filme de Língua Não Inglesa. O diretor brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1956, foi contemplado nessa mesma categoria em 1999, com “Central do Brasil”, que lhe rendeu o Urso de Ouro da Berlinale e uma indicação ao Oscar. Fernanda Montenegro estava com ele nessa. Já Torres protagonizou duas de suas mais elogiadas ficções (ambas rodadas em duo com Daniela Thomas): “Terra Estrangeira, de 1995 (hoje na Netflix) e “O Primeiro0 Dia”, de 1998.

Previsto para ocupar um circuito amplo nos Estados Unidos nas raias das nomeações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas hollywoodiana, “Ainda Estou Aqui” parte do romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o autor de “Feliz Ano Velho” (1982). Durante os Anos de Chumbo, no começo da década de 1970, Eunice (mãe de Marcelo) teve seu marido, o engenheiro Rubens (papel de um coruscante Selton Mello), levado para depor, mas ele nunca regressou. Dali para diante, ela se empenha em dissipar névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos “subversivos”, numa trajetória heroica. A montagem espartana de Affonso Gonçalves narra essa luta em saltos no tempo, com direito a uma entrada de F. Montenegro numa sequência de doer na alma. Maria Carlota Bruno (“No Intenso Agora”) e Rodrigo Teixeira (“A Vida Invisível”) assinam os créditos de produtor desse blockbuster sul-americano.

“O ‘Ainda Estou Aqui’ é um relato sobre uma mulher que, face à tragédia que se abate sobre sua família, face à uma terrível violência de estado, é obrigada à encontrar novas formas de resistência”, disse Salles por e-mail ao Correio da Manhã.

Waltinho (como é chamado) passou 12 anos sem rodar longas de ficção depois do lançamento de “Na Estrada” (“On The Road”, 2012). Nesse período, lançou o .doc “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang” (2014) e rodou curtas (“Quando a Terra Treme”). Em 1999, o cineasta concorreu ao Oscar com “Central do Brasil”, mas perdeu para “A Vida É Bela”, do italiano Roberto Benigni. Fernandona foi indicada em terras hollywoodianas também, mas foi preterida em favor de Gwyneth Paltrow, em “Shakespeare Apaixonado”. Torres pode ter melhor sorte.

No passado, acreditava-se que a vitória no Globo de Ouro era uma garantia de Oscar, mas hoje já se sabe que não, apesar de assegurar prestígio a suas/seus nomeadas/os. O maior peso no futuro das/dos oscarizáveis vem dos prêmios de entidades de classe, com destaque para duas: o Sindicato de Atrizes e Atores, o Screen Actors Guild (SAG) e o Sindicato de Produtoras/es, o Producers Guild of America (PGA). O primeiro anuncia seus concorrentes em 8 de janeiro e entrega suas láureas em 23 de fevereiro. O PGA revela seus indicados em 10 de janeiro e contempla seus eleitos em 8 de fevereiro. A festa da Academia vai rolar no dia 2 de março, no Dolby Theatre.

Quem mais deve dar trabalho para Torres é Demi Moore. Um dos pontos mais tocantes do Globo de Ouro foi o discurso dela ao sair vitoriosa da competição de Melhor Atriz de Cômica por um... filme de terror – e que filme! Hoje no ar na plataforma MUBI, “A Substância” (“The Substance”) revitalizou a fama da estrela de “Ghost – Do Outro Lado Da Vida” (1990). Ela surpreendeu seus fãs (e cinemeiros mais moços) ao viver uma estrela decadente que se submete a um experimento com uma fórmula química a fim de reaver sua juventude.

“Uma vez, disseram que eu era uma ‘atriz de pipocas’, só de filmes populares. Achava que já havia feito tudo o que tinha para fazer quando me chegou esse roteiro fora da caixinha”, disse Demi, cujo cacife muda de patamar após a aclamação do body horror de Coralie Fargeat, que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, em maio.

Atração de abertura do Festival do Rio, em outubro, “Emilia Pérez” nasceu para as telas lá na Croisette também e, depois, vendeu 1.067.268 tíquetes em seu país. Lá mesmo, em Cannes, na disputa pela Palma de Ouro, seu idealizador, o supracitado Audiard, ganhou o Prêmio do Júri pela saga (cantada em espanhol) de um chefão do tráfico do México, chamado Manitas, que transiciona e assume identidade feminina, renascendo como Emilia. O papel é da espanhola Karla Sofía Gascón, que saiu da Croisette com um prêmio coletivo de atuação feminina compartilhado com Adriana Paz, Selena Gomez e Zoe Saldaña. Essa última abocanhou o Globo de Atriz Coadjuvante. O filme venceu ainda a láurea de Melhor Canção (“El Mal”).
Na seleção do Melhor Filme de Drama, “O Brutalista” (“The Brutalist”) sagrou-se vitorioso por sua ambição estética radical. Foi agraciado ainda com troféus de Melhor Direção, dado Brady Corbet, e Melhor Ator, confiado a Adrien Brody. Trata-se de um esplendoroso painel histórico (de 3h e meia) sobre o calvário de um arquiteto húngaro (Brody) na América do pós-Guerra.

Comandada pela comediante Nikki Glaser (sem um pinguinho de graça sequer), a distribuição dos Globos dourados teve transmissão em português pela TNT e pela plataforma Max. Foi difícil não se comover em vários pontos do evento, em especial quando “Wicked” consagrou-se na seara dos blockbusters. Depois de passar pelo Natal e pelo Réveillon lotando salas, com um faturamento de US$ 681 milhões, “Wicked”, baseado no fenômeno homônimo da Broadway, foi agraciado numa categoria – de triunfo nas bilheterias - que nasceu em 2024, a fim de reverenciar títulos que reataram a relação das plateias com as salas de projeção. Sua venda de ingressos segue intensa, pois seu boca a boca come fermento, sobretudo em seu alinhamento com a comunidade queer.

Seu êxito no domingão passado em Beverly Hills reforça os esforços da organização dos Globos para espantar demônios que assombraram o troféu quando este era oferecido pela Hollywood Foreign Press Association (HFPA), inaugurada em 1943. A primeira cerimônia em que a láurea foi concedida ocorreu há 81 anos, no estúdio 20th Century Fox, de olho nos magnatas da indústria. Seu primeiro vencedor foi “A Canção de Bernardette”, que venceu nas disputas de Melhor Filme, Direção (Henry King) e Atriz (Jennifer Jones). O troféu, caracterizado por uma reprodução da esfera terrestre rodeada por uma película de filme cinematográfico, teve vários designers ao longo das últimas oito décadas. A versão distribuída atualmente pesa cerca de 3,5 quilos. É feita de latão, zinco e bronze, e mede 11,5 polegadas, acoplando-se a uma base retangular, vertical, de notável elegância.

De 1950 até 2022, guerras internas – de egos e de condutas profissionais questionadas em parâmetros éticos – quase levou a festa de entrega dessa estatueta à extinção, sob a acusação de abusos de poder, falta de representatividade (das populações negras, asiáticas, indígenas) e sexismo. A ameaça de cancelamento reinou sob as cabeças da HFPA até uma revitalização, em 2023, o que deu ao contingente de profissionais de mídia envolvidos em sua realização (334 jornalistas, de 85 países) a chance de recomeçar, alinhada com os pleitos urgentes da contemporaneidade.

Pautas sociológicas mobilizaram a festa, como comprova o troféu de Melhor Roteiro dado a “Conclave”, coroando o script de Peter Straughan. Com base em romance de Robert Harris, esse thriller ambientado no Vaticano expõe o avanço de uma direita xenófoba, sexista e homofóbica rondando a passagem de bastão no seio eclesiástico dos arredores de Roma, após a morte do Papa. Rola uma disputa acirrada para saber quem vai ocupar o lugar de Sua Santidade. Uma escolha infeliz pode resultar num retrocesso capaz de dar fim a todos os avanços que a religião católica esboçou (ou tentou esboçar) na luta para expiar seus pecados. Em meio à troca de estadista, uma estratégia digna de uma partida de “War” (famoso jogo de tabuleiro) se estabelece conforme o sacerdote Thomas Lawrence (papel de Ralph Fiennes) assume a tarefa de conduzir os votos de seus colegas.

Destaque na série “Succession” (da MAX) no papel de Roman Roy, Kieran Culkin (o irmão de Macaulay) fez jus ao favoritismo que arrasta desde as primeiras exibições públicas de “A Verdadeira Dor” (“The Real Pain”), filmado pelo também ator Jesse Eisenberg, ao conquistar o Globo de Ouro de Melhor Coadjuvante. A nova empreitada atrás das câmeras do astro de “A Rede Social” (2010) é de uma precisão suíça e de uma coragem espartana. O aspecto mais corajoso é a exploração de uma veia cômica para falar tanto de fantasmas do Holocausto quanto de vazios existenciais. Com enquadramentos rigorosamente lapidados (à altura dos olhos de seus personagens), Jesse constrói uma comédia dramática de atuações convulsivas sobre a viagem dos primos David e Benji Kaplan. Os personagens são vividos pelo próprio Eisenberg e por Kieran, que está uma força da natureza em cena, numa viagem pela Polônia da rota dos expurgos nazistas.

Com um orçamento minúsculo se comparado aos custos de seus concorrentes ao prêmio de Melhor Animação (tipo “Moana 2” e “Divertida mente 2”), "Flow", de Gints Zilbalodis, leva para a Letônia o apreço de Hollywood em forma de um Globo. Nessa trama sem diálogos, uma nova Arca de Noé – mas sem elementos místicos – salva um bando de animais de um dilúvio, num futuro distópico sem humanos. Um gato, o protagonista, terá que lidar com o resto da bicharada para chegar a um lugar seguro... em paz.
Coube à dupla Elton John e Brandi Carlile anunciar os nomes de Trent Reznor e Atticus Ross como donos do Globo de Melhor Trilha sonora por “Rivais” (“Challengers”), do italiano Luca Guadagnino. Caetano Veloso tem uma canção no longa: “Pecado”.

Ao escolher os ganhadores dos Globos de TV ou streaming, a massa votante elegeu “Xógum: A Gloriosa Saga do Japão” e “Hacks” como seus queridinhos.

VITÓRIAS DA CERIMÔNIA

DRAMA
Melhor Filme: "O Brutalista", de Brady Cobert
Melhor Atriz: Fernanda Torres ("Ainda Estou Aqui")
Melhor Ator: Adrien Brody ("O Brutalista")

COMÉDIA/ MUSICAL
Melhor Filme: "Emilia Pérez", de Jacques Audiard
Melhor Atriz: Demi Moore ("A Substância")
Melhor Ator: Sebastian Stan ("Um Homem Diferente")

DEMAIS PREMIAÇÕES
Conquista Cinematográfica e Bilheteria: "Wicked"
Série de Drama: "Xógum: A Gloriosa Saga do Japão"
Missérie:  "Baby Rena"
Série de Comédia: "Hacks"
Direção de longa-metragem: Brady Corbet ("O Brutalista")
Atriz Coadjuvante: Zoe Saldaña ("Emilia Pérez")
Ator Coadjuvante: Kieran Culkin ("A Verdadeira Dor")
Roteiro: Peter Straughan ("Conclave")
Animação: "Flow", de Gints Zilbalodis
Filme de Língua Não Inglesa: "Emilia Pérez"
Melhor Ator de Série de Drama: Hiroyuki Sanada ("Xógum")
Melhor Ator de Série de Comédia/Musical: Jeremy Allen White ("O Urso")
Melhor Atriz de Série de Drama: Anna Sawai ("Xógum")
Melhor Atriz de Série de Comédia/Musical: Jean Smart ("Hacks")
Melhor Ator em Minissérie: Colin Farrell ("Pinguim")
Melhor Atriz em Minissérie: Jodie Foster ("True Detective: Terra Noturna")
Melhor Ator Coadjuvante em Série: Tadanobu Asano ("Xógum")
Melhor Atriz Coadjuvante em série: Jessica Gunning ("Bebê Rena")
Melhor Performance em stand-up: Ali Wong ("Single Lady")
Trilha sonora: Trent Reznor e Atticus Ross ("Rivais")
Canção Original: "El Mal" ("Emilia Pérez")