Por Affonso Nunes
Em dezembro de 1968, os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pelo regime militar, na esteira do recrudescimento do autoritarismo e das arbitrariedades chanceladas pelo Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968. Após 54 dias encarcerados e mais quatro meses de confinamento domiciliar em Salvador, Bahia, os músicos foram exilados do Brasil, em julho de 1969, retornando ao país no início de 1972.
Recém-lançado, o livro "It's a Long Way - O Exílio em Caetano Veloso", de Márcia Fráguas, reflete sobre o modo como as perseguições perpetradas pelos militares fraturou, no geral, o campo das artes e da cultura no Brasil do final da década de 1960 e, em particular, o Tropicalismo, com o exílio de seus dois principais artífices. A análise das canções que compõem a obra fonográfica do cantor e compositor Caetano Veloso produzida no período entre a prisão e o exílio (1969) e o retorno ao Brasil (1972) - os álbuns "Caetano Veloso" (1969), "Caetano Veloso" (1971) e "Transa" (1972), esses dois últimos em Londres - busca evidenciar e interpretar a construção de uma poética do exílio. "'It's a Long Way', é um livro que traduz os procedimentos usados pelo tropicalista cantor da 'alegria, alegria' nacioinal para verter em canção um dos momentos mais trágicos da história do Brasil, seja no plano individual, seja na projeção coletiva. No conjuto das canções que tratam da língua e da linguagem turvadas pelo exílio londrino forçado, pela distância das coisas do seu país, Caetano Veloso revela a 'tropical melancolia'", destaca o pesquisador e professor da Uerj Leonardo Davino de Oliveira, que assina o prefácio da obra.
Ao contrário de Gil, que ampliou sua vivência musical e absorveu influências que marcariam suas obras futuras, Caetano foi extremamente itronspectivo em seu exílio na capital inglesa. "Hoje quando acordei dei de cara com a coisa mais feia que já va na minha vida. Essa coisa era a minha própria cara (...) Mas agora eu quero dizer aquele abraço a quem que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviaos de Londres aquele abraço pra esses caras", escreveu Caetano em artigo publicado no Pasquim no final de 1969.
Além de dissecar o discurso de Caetano nesses três discos, Márcia Fráguas colheu importantes depoimentos de Cetano em entrevista concedida pelo artista em 2020 para a elaboração do livro. Sobre o álbum de 1969, gravado parte em Salvador e parte em São Paulo, ele explica: "Quando gravamos o disco na JS (estúdio na capital baiana), não estávamos mais presos e incomunicáveis. Estávamos no que chamavam de 'confinamento': não podíamos deixar Salvador e tínhamos de nos apresentar a um coronel, então chefe da PF (Polícia Federal) na Bahia, todos os dias. Issou durou quatro meses. (Rogério) Duprat foi a Salvador e coversamos. Voltou para o Sudeste e pôs toda a instrumentação num estúdio", disse, referindo-se ao arranjador dos principais álbuns do movimento tropicalista.
Os discos seguintes foram gravados em Londres, tendo o de 1971 contado com músicos ingleses e "Transa", do ano seguinte, com uma banda formada pelos brasileiros Jards Macalé (guitarra e violão), Tutty Moreno (bateria), Moacyr Albuquerque (baixo) e Áureo de Sousa (percussão). Os arranjos foram criados de forma coletiva. Pouco tempo depois de lançar esse álbum, que teve repercussão muito positiva no Brasil, Caetano soube que não existiam mais empecilhos para seu retorno. "Eu vim e aprendi que já podia viver no Brasil. Fiquei três anos na Bahia, Moreno nasceu, tudoi ficou mais vivo. Eu nem sentia que não estava em Londres. Nunca tive saudades de lá", revela.
Com texto da orelha da doutora em Sociologia pela Unicamp Sheyla Diniz, a obra é uma adaptação da dissertação apresentada em 2021 pela historiadora Márcia Fráguas ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira.
Márcia Fráguas é formada em História pela Universidade de São Paulo (2016) e possui mestrado em Literatura Brasileira (2021), pela mesma instituição. Seu trabalho é focado em crítica e ensaio. Desde 2022, junto a Leonardo Davino de Oliveira e Enzo Banzo, organiza o evento "Lamber a Língua", colóquio sobre poesia e canção na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) que resultou na publicação do livro Lamber a Língua - Caetano 80, em 2023. Atualmente faz doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade da Uerj.