A vida de Raquel Cantarelli é digna de um filme. Em edições anteriores, o Correio da Manhã contou a história da brasileira que luta há dois anos na Justiça para ter a guarda das filhas Júlia (7 anos) e Isabella (5) de volta após elas serem levadas para a Irlanda com base na interpretação questionável de um tratado internacional, a Convenção de Haia. Recentemente, ela obteve um feito histórico ao ganhar na justiça e ter a autorização para trazer suas filhas de volta para o Brasil. E essa luta está prestar a ganhar maior notabilidade. Em entrevista exclusiva ao Correio da Manhã, Cantarelli contou que estão produzindo um filme sobre a história de sua briga contra a Convenção de Haia.
Raquel Cantarelli é talvez a mulher mais notória de um drama que atinge várias. Homens, especialmente em países da Europa, estão invocando a Convenção de Haia para ganharem de forma automática a guarda dos filhos. Questões importantes, como a eventual violência contra as crianças ou as mulheres não tem sido levadas em conta. Por isso, elas passaram a ser chamadas “Mães de Haia”.
No momento, o longa-metragem está na elaboração de roteiro e pré-produção. A equipe é predominantemente feminina, com direção de Júlia Rezende. O trabalho mais recente da cineasta é a série brasileira da Netflix “Senna” (2024), em conjunto com o diretor Vicente Amorim, que conta a história do tricampeão de Fórmula Um Ayrton Senna. Mas a diretora também dirigiu diversos filmes como a comédia romântica “Meu Passado Me Condena” e os longas “Ponte Aérea” e “Depois a Louca Sou Eu”.
O roteiro está sendo desenvolvido por Lícia Manzo – que já escreveu diversas telenovelas como “Sete Vidas” (2015) e “Um lugar ao Sol” (2021-2022) . A produção é de Mariza Leão, uma da mais importantes produtoras do país. Em seu currículo, Mariza coleciona uma variedade de filmes, desde comédias blockbusters como a trilogia “De Pernas Pro Ar” (2010, 2012 e 2019), até obras mais sérias e cultuadas como “Meu Nome Não é Johnny” (2008) e cultuadas artisticamente, como “Guerra de Canudos” (1997). Em princípio, a equipe do filme cogita convidar a atriz Débora Falabella para dar vida a Raquel Cantarelli nas telas de cinema.
“Tive três reuniões com a diretora, ela é maravilhosa e muito sensível. A Mariza Leão está querendo se aposentar e ela me disse que queria finalizar a carreira dela com esse filme, porque ela quer encerrar com um impacto”, contou Cantarelli para a reportagem.
A expectativa é que a obra seja finalizada e distribuída para as telas de cinema de todo território nacional daqui a dois anos, em 2027. O prazo segue o padrão dentro de toda a elaboração de um longa-metragem, especialmente porque há a expectativa de gravar cenas no exterior.
Relembre
Raquel morava na Irlanda, onde conheceu seu ex-marido em 2017, com quem ela casou e teve duas filhas. Quando a mais velha completou dois anos, a brasileira afirma ter descoberto que a filha estava sendo vítima de abuso sexual vindo do próprio pai, que trabalhava como segurança em uma boate e chegava em casa de madrugada.
Ao Correio da Manhã, ela relatou que uma noite acordou com a filha mais velha chorando e foi ao quarto dela. “Quando eu abri a porta, ele estava tampando a boca da minha filha. Ela estava sentadinha no trocador, ele tampando a boca dela, ele estava só de cueca e com o pênis ereto. A minha filha estava muito assustada. Ela chorava de soluçar, um choro estrondoso”, relatou.
Ela questionou sobre o que aconteceu, mas ele deu dois relatos diferentes e começou a ficar nervoso. “Na manhã seguinte eu fui trocar a fralda dela e ela estava toda empelotada na vagina. Bolinhas como se fosse de fricção de barba ou de alguma outra coisa e tinha um pelo masculino próximo da virilha dela. A minha filha nunca teve alergia a fralda, e não era marca de assadura”, completou.
Ela tentou denunciar o caso e pedir ajuda ainda na Irlanda, mas queixa foi arquivada pelo judiciário local. Tentou sair de casa, mas o irlandês a ameaçou, tomou seus documentos e dinheiro, mantendo-a em cárcere privado. Com a ajuda de uma vizinha, Raquel conseguiu acionar a Embaixada do Brasil na Irlanda e a Polícia Federal. Depois de muitas tentativas, conseguiu voltar ao Brasil com as duas filhas, em 2019.
Convenção de Haia
No Brasil, ela ganhou na primeira instância a guarda das crianças e viveu com elas no Rio de Janeiro até o dia 14 de junho de 2023, quando a polícia bateu na porta de sua casa e levou de volta para a Irlanda suas duas filhas. Raquel descobriu que seu marido tinha recorrido da decisão da guarda das crianças e ganhou o caso porque acionou a Convenção de Haia.
Estabelecida em 1980, a Convenção de Haia é um acordo internacional firmado para impedir o sequestro internacional de crianças. Ela determina que crianças que são levadas para fora dos países onde nasceram têm o direito de ser repatriadas. Mesmo tendo a melhor das intenções, a convenção na época não levava em consideração relacionamentos internacionais, entre pessoas de dois países diferentes.
Na avaliação de advogados que defendem mulheres atingidas, a aplicação da convenção em muitos casos vem se dando de uma forma automática, priorizando a questão geográfica sem levar em conta se haverá de fato um maior bem-estar e segurança às crianças, muitas vezes dando aval a interpretações machistas e xenofóbicas em favor de homens, especialmente de países da Europa.
História
Raquel nunca se confirmou. E obteve uma vitória histórica. Ela recorreu à Justiça e o Ministério Público Federal (MPF) encaminhou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) um recurso sobre o caso – que acionou o artigo 13B da Convenção, que desobriga as autoridades do Estado à repatriação quando existir um “risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica". Após três audiências, os cinco ministros aprovaram o recurso do MPF em 17 de dezembro de 2024. Em 20 de fevereiro foi publicado o acórdão.
“Isso é uma quebra de paradigmas. Uma vitória para todas as mulheres”, celebrou ao ler a reportagem a modelo Luiza Brunet, ativista de causas e movimentos contra a violência de gênero.
Com o processo jurídico devidamente resolvido no Brasil, Raquel Cantarelli se prepara para ir para a Irlanda acompanhar todo o processo de perto. Por meio de suas redes sociais, ela lançou uma campanha para juntar dinheiro para conseguir arcar com as despesas da viagem.
Para a reportagem, ela reiterou que está muito com suas filhas e contou que, quando toda a situação chegar ao fim, espera que elas possam crescer com orgulho de toda a sua trajetória.
“Eu espero que minhas filhas cresçam como mulheres fortes, mulheres corajosas, que tenham orgulho da mãe delas, que tenham orgulho delas e da história delas. Que não tenham vergonha de ser quem elas são, de terem passado pelo que passaram. Que elas possam erguer a cabeça e dizer o que elas passaram, que a mãe delas lutou por elas, e que elas conheceram um amor de verdade, de uma mãe que vai até o fim para os seus filhos”, contou.