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'Moda é uma coisa e roupa é outra'

Por João Perassolo (Folhapress)

Quando era criança, Airon Martin ouvia sua avó dizendo que ele só seria homem se fosse identificado com um "dr." na frente. Para ela, o neto deveria seguir uma profissão tradicional.

"Tentei ser médico, tentei ser advogado, tudo que tivesse um 'dr.', mas a moda foi mais forte", conta o criador da Misci, talvez a marca mais comentada da moda nacional hoje.

Foram necessárias décadas e duas mudanças de carreira até que o estilista de 31 anos visse suas criações sendo desfiladas pela primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, e pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em entrevistas na televisão e em eventos oficiais do governo, colocando a sua etiqueta, até então mais conhecida por quem acompanha moda, na boca do povo.

Muito mais gente passou a acessar o site e frequentar as lojas da marca - uma na rua Mateus Grou, celeiro de novos estilistas no bairro de Pinheiros, e outra no shopping Cidade Jardim, ambas em São Paulo - depois que as líderes de esquerda vestiram as peças, ele conta, numa conversa em um café de São Paulo.

Na entrevista para o programa de TV, Janja usava uma camisa off-white de seda com estampas em vermelho mostrando um mapa do Brasil desconstruído e pequenas imagens de personagens do folclore nacional, como o Saci Pererê. Na cerimônia de posse, a ministra apareceu com uma camisa em que se via a cangaceira Maria Bonita junto a tatus e árvores sem folhagens.

Desfiladas na São Paulo Fashion Week, as estampas das duas peças foram desenhadas pela carioca Isabel Moura, que trabalha para a marca. A primeira teve como inspiração a destruição da Amazônia, e a segunda a personagem bíblica de Eva, segundo a ilustradora. As peças fazem parte da coleção "Eva - Mátria Brasil", que versa sobre filhos de mãe solo, como o próprio estilista.

Martin foi criado pela mãe e pela avó em uma casa nos fundos de um cabaré de beira de estrada em Sinop, cidade de 150 mil habitantes no interior de Mato Grosso, convivendo diariamente com prostitutas. "Era tudo muito natural para mim, entender as histórias daquelas mulheres. Eu tinha nove anos de idade e a prostituta falava 'que pau grande do cacete' [em referência a um cliente], ela falava 'eu tô assada'", ele diz, com bom humor.

Às segundas, Martin ia com a mãe e as prostitutas para lojas de roupa de Sinop, onde as profissionais compravam vestimentas sensuais que usariam para conquistar clientes. Este ritual colocou o garoto em contato com a moda, num momento em que ele já desenhava vestidos.

Sua história de vida já o fez sentir muita vergonha, ele conta, mas hoje seu passado inusual, transferido para as criações da Misci, é um grande ativo da marca no mercado, o que Martin diz considerar melhor do que qualquer "storytelling" publicitário.

Por exemplo, a bolsa mais vendida da grife, chamada Nine, teve o formato inspirado numa lancheira de sua infância e o nome derivado da transexual Nina, uma profissional do cabaré. "As marcas grandes têm muito trabalho para se incluir dentro dos princípios do novo mundo, diverso. Eu nasci e cresci nesse mundo diverso, mesmo sendo no interior do Mato Grosso, em uma cidade super bolsonarista, racista para cacete."

Outro fator decisivo no sucesso da Misci, afirma o estilista, é a qualidade dos produtos, de execução e acabamentos bem cuidados e feitos com matéria-prima brasileira tipo exportação. O fio de seda das camisas de Janja e Marina Silva é o mesmo usado por Dior e Hermès. O couro de pirarucu empregado em algumas bolsas vem do mesmo curtume que atende Rick Owens.

A Misci -de "miscigenação"- foi seu projeto de conclusão do curso de desenho industrial no Istituto Europeo di Design, em São Paulo. Sua ideia inicial era desenvolver uma linha de mobiliário, mas o então estudante acabou mudando o rumo e optou por criar a marca de roupas, que seria "uma pesquisa do que era a identidade brasileira".

A criança que desenhava vestidos começava a materializar seu sonho de criar moda. As primeiras peças da Misci foram vendidas na multimarcas descolada Cartel 011, em 2018, e a loja inaugural, em Pinheiros, veio dois anos mais tarde, em meio à pandemia.

Martin faz questão de dizer que a etiqueta, que hoje emprega 34 pessoas, foi fundada de maneira independente, sem um investidor bancando os custos. Este ano o empreendedor está concentrado na internacionalização da marca, com a criação de um site para atender o mercado externo e a contratação de influenciadores em Paris, e no lançamento de uma nova etiqueta no segundo semestre.

A grife vai levar seu nome e será dedicada à criação de vestidos em pequeníssimas quantidades, na linha de marcas de alta-costura, com produtos menos comerciais e que demandam mais tempo para serem confeccionados.

Assim como Rafella Caniello, da Neriage, e Isaac Silva, da marca de mesmo nome, Martin é um dos jovens designers que estão dando uma nova cara à moda nacional -não por acaso, as etiquetas têm lojas na mesma rua da Misci, em São Paulo. O estilista tem tentado reunir estes e outros criadores em torno de um movimento que chama de "ressignificação da moda", para criar uma nova cultura de consumo.

"Moda é uma coisa e roupa é outra. A gente não faz só roupa -a roupa é um dos reflexos da moda que a gente apresenta. É meio filosófico isso, mas temos que mostrar para o consumidor que existe diferença. Roupa muita gente faz, o fast fashion faz. Moda poucas pessoas fazem no Brasil. É entender quem está fazendo moda e valorizar isso."

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